Sem Chão – No Other Land é um documentário impactante que mergulha nas complexidades do conflito israelense-palestino, utilizando como pano de fundo as tensões territoriais e humanas na Cisjordânia. Dirigido por um coletivo de cineastas palestinos e internacionais, o filme se destaca por sua abordagem íntima e visceral, capturando não apenas a violência estrutural da ocupação, mas também as histórias pessoais que dão rosto a uma luta secular. E isso não é pouca coisa.
As filmagens ocorrem em meio a um cenário de despejos forçados, demolições de casas e expansão de assentamentos israelenses, focando em vilarejos como Masafer Yatta, região declarada como “zona de treinamento” pelo governo israelense na década de 1980. A equipe enfrentou obstáculos práticos e políticos: ameaças de soldados, restrições de movimento e a urgência de documentar atrocidades em tempo real. Essa realidade imprime ao filme um caráter de resistência cinematográfica, onde a câmera torna-se tanto testemunha quanto instrumento de denúncia.
O documentário equilibra as perspectivas de dois personagens centrais: Basel Adra, um jovem ativista palestino que narra a luta diária de sua comunidade para permanecer em suas terras, e Yuval Abraham, um jornalista israelense que, embora crítico da ocupação, carrega o peso de sua identidade nacional. A dinâmica entre os dois revela as assimetrias do conflito: enquanto Basel vive a angústia de ver sua casa destruída, Yuval confronta o privilégio de ser cidadão de um Estado que oprime o outro. E o filme não suaviza ao trazer os conflitos que cada posição traz.
As histórias pessoais são entrelaçadas com flashbacks e registros familiares, mostrando como o passado molda o presente. Basel relembra a infância sob a sombra de tanques, enquanto Yuval reflete sobre a educação sionista que normalizou a ocupação para muitos israelenses. Essas memórias não são apenas pano de fundo emocional, mas ferramentas para expor como a violência sistêmica se reproduz através de gerações.
Com aproximadamente 90 minutos, o filme evita prolongamentos desnecessários. Cada cena é calculada para maximizar o impacto: desde planos abertos das paisagens áridas da Cisjordânia até closes nos rostos marcados pelo medo e pela resiliência. A edição ágil intercala momentos de tensão (como confrontos com o exército) com interlúdios de cotidiano (ceias familiares, crianças brincando), reforçando a contradição entre a normalidade desejada e a violência imposta.
Em um momento em que a escalada de violência na Palestina volta a ocupar manchetes globais, Sem Chão ganha urgência como registro histórico e humano. O filme desafia narrativas simplistas ao mostrar que a ocupação não é um “conflito entre dois lados”, mas um projeto de despossessão colonial. Ao centrar vozes palestinas sem apagar as fissuras no lado israelense (como a figura de Yuval), a obra evita o maniqueísmo, propondo um diálogo crítico sobre responsabilidade e solidariedade.
O documentário não está isento de lacunas: aprofunda-se menos nas raízes históricas do sionismo e poderia explorar mais alternativas políticas. No entanto, sua força reside na humanização da resistência pois é o que mais precisa ser evidenciado neste momento da história. Ao transformar estatísticas em rostos e destruição em poesia visual (como a imagem recorrente de oliveiras arrancadas), Sem Chão cumpre um papel essencial: lembrar que, em meio à desesperança, a luta pela terra e pela dignidade persiste — e deve ser vista.
No Other Land é mais que um documentário; é um ato de sobrevivência narrativa. Num contexto geopolítico marcado pela desumanização do “outro”, o filme resgata a potência do cinema como arma de empatia. Sua relevância transcende fronteiras, convidando espectadores globais a enxergarem a Palestina não como um “problema”, mas como um mosaico de vidas dignas de existir — e de ser filmadas.