Antes de começar essa crítica, preciso dizer que a trilogia de Como Treinar o Seu Dragão é, sem sombra de dúvidas, a minha trilogia favorita de animação. Então, a régua para avaliar essa nova versão em live-action estava altíssima. Eu não queria apenas um bom filme; queria reviver aquela mesma emoção e o quentinho no coração que senti quando assisti à animação pela primeira vez em 2010. E, para a minha alegria, posso dizer que essas expectativas foram plenamente atendidas. Dean DeBlois conseguiu não só fazer jus ao clássico original, como também, de certa forma, torná-lo ainda mais maduro e emocionalmente intenso.
É curioso pensar que, enquanto a Disney patina entre remakes excessivamente fiéis e outros radicalmente desconectados da essência dos filmes que os originaram, coube à antiga rival DreamWorks oferecer a melhor adaptação de um clássico animado para o live-action até hoje. Dean DeBlois, que comandou a trilogia animada e também assinou o ótimo Lilo & Stitch(2002), faz aqui sua estreia no cinema live-action com uma segurança e sensibilidade impressionantes. O cineasta entende perfeitamente o que fez da história original um marco e, ao invés de se apoiar apenas na nostalgia, decide explorar tons mais dramáticos, com atuações que recontextualizam os personagens e reforçam a atemporalidade da mensagem.
A história de Soluço continua praticamente a mesma — e isso não é um problema. Para quem, por algum motivo, ainda não conhece: o jovem Viking é visto como um completo desajustado em sua ilha natal, Berk, onde os dragões são inimigos mortais há séculos. Ao capturar um lendário Fúria da Noite, Soluço decide, em vez de matá-lo, libertá-lo e aprender mais sobre os dragões. Nasce assim a inesquecível amizade com Banguela, capaz de transformar não só o destino de Berk, mas a forma como seus habitantes enxergam o mundo. A diferença aqui está na forma como tudo isso é contado: o humor característico da animação dá lugar a um tom mais sóbrio e emocional, mais próximo de um drama de amadurecimento do que de uma aventura infantojuvenil.
Mason Thames, no papel de Soluço, entrega uma performance surpreendentemente contida e emocionalmente densa. Seu Soluço carrega, de forma palpável, as marcas da negligência paterna, da ausência materna e do bullying constante. Ainda há momentos leves, mas a grande força do personagem está nos silêncios, nos olhares e na vulnerabilidade que Thames imprime em cada cena. Sua química com o Banguela digital é de uma naturalidade tão grande que, em poucos minutos, já esquecemos que se trata de CGI — mérito da excelente atuação, mas também do impressionante trabalho técnico.
Falando nisso, o filme acerta em cheio na concepção dos dragões. Ao contrário do que vimos no insosso remake de O Rei Leão, onde os animais fotorrealistas eram incapazes de expressar emoção, aqui os olhos e expressões de cada criatura são carregados de sentimento. É possível perceber quando um dragão está assustado, curioso, feliz ou furioso, o que torna a convivência entre humanos e dragões mais crível e emocionalmente poderosa. Destaco o Banguela, que segue sendo um dos personagens digitais mais cativantes e expressivos do cinema moderno.
Outro ponto que merece aplausos é a atuação de Gerard Butler, que reprisa o papel de Stoico, agora com nuances que só o live-action permite explorar. Os momentos de silêncio e os olhares pesados de Butler conseguem transmitir mais sobre a relação complicada com o filho do que diálogos inteiros. É talvez a performance mais humana e comovente do ator em anos. Outra boa surpresa ( E já esperada depois do seu excelente trabalho em The Last of Us) é Nico Parker como Astrid. Em meio a críticas injustas na internet antes mesmo da estreia, Parker entrega uma Astrid mais intensa e competitiva, com ambições claras e orgulho ferido por conviver com o filho do chefe, visto como privilegiado. A forma como a personagem evolui, reconhecendo o valor de Hiccup, é tratada com delicadeza e força, e a química entre os dois atores funciona, especialmente nos momentos mais contidos. Os coadjuvantes também ganham pequenas, porém significativas, adições às suas histórias, o que dá mais consistência ao universo de Berk e aos Montadores de Dragões, tornando-os mais do que simples alívios cômicos.
A parte técnica é outro espetáculo à parte. A direção de fotografia de Bill Pope capta a beleza gélida e mística de Berk com planos abertos deslumbrantes, sobrevoos que literalmente tiram o fôlego e um trabalho de iluminação digno de premiação. Os efeitos visuais são de primeira linha e a ambientação Viking ganha vida com cenários e figurinos ricos em detalhes. A trilha de John Powell, baseada nos temas originais, surge revitalizada e acompanha as cenas com grandiosidade, mas também com a delicadeza necessária para os momentos mais íntimos.
Se há alguma ressalva a ser feita, ela diz respeito ao fato de que, por se manter tão fiel ao original, o filme inevitavelmente carece de surpresas para quem já conhece a história de trás pra frente. Quem espera grandes reviravoltas ou um desvio narrativo ousado pode se decepcionar. E, sim, é impossível ignorar que essa adaptação faz parte de um movimento de nostalgia lucrativa. Mas aqui, diferentemente de tantos outros remakes esquecíveis, a motivação comercial não impede que se faça arte com alma.
O live-action de Como Treinar o Seu Dragão é mais do que uma releitura visualmente espetacular de um clássico querido. É a prova de que, quando nas mãos certas, um remake pode respeitar a essência de uma obra e, ao mesmo tempo, acrescentar novas camadas a ela. Eu sai do cinema sorrindo com a mesma sensação de encanto, emoção e aquela pontinha de esperança no coração — exatamente como aconteceu comigo, lá em 2010. E, para alguém cuja trilogia favorita é essa, não há elogio maior.