Em tempos de obscurantismo científico e marginalização dos saberes ancestrais, Criaturas da Mente surge como um respiro profundo na cinematografia documental brasileira. O diretor Marcelo Gomes parte de uma inquietação pessoal – sua própria incapacidade de sonhar durante o sono, agravada pelos anos pandêmicos – para construir uma obra que investiga os mistérios do inconsciente humano.
O documentário tem como bússola intelectual o neurocientista Sidarta Ribeiro, figura central que conduz o espectador pelos labirintos neurológicos do sonho e dos estados alterados de consciência. Sua presença traz credibilidade científica enquanto o filme costura conexões entre pesquisas de ponta e conhecimentos milenares que permeiam a cultura brasileira.
A narrativa visual de Criaturas da Mente merece destaque por traduzir em imagens a fluidez onírica que o tema exige. Com fotografia que alterna entre o contemplativo e o imersivo, o filme não apenas fala sobre estados alterados de consciência – ele nos convida a experimentá-los cinematograficamente. Sequências em rituais de diferentes matrizes culturais brasileiras são filmadas com respeito e intimidade, sem cair no exotismo superficial.
Onde o documentário se destaca é na sua proposta de diálogo entre ciência moderna e tradições ancestrais. As experiências de transe e êxtase, tanto no sono quanto induzidas por plantas de poder, são apresentadas simultaneamente como objeto de estudo científico e como práticas culturais legítimas. O filme evita hierarquizar esses conhecimentos, colocando-os em uma relação horizontal que enriquece ambas perspectivas.
Contudo, a abrangência temática acaba sendo também uma fragilidade. Ao tentar abarcar tantos aspectos do sonhar e dos estados alterados de consciência, algumas linhas investigativas ficam apenas esboçadas. A relação específica entre sonhos e substâncias psicodélicas, por exemplo, é tratada com certa timidez ou inocência, talvez ainda refletindo tabus sociais, pois faltou trazer mais exemplos práticos de pessoas impactadas com o tratamento.
Criaturas da Mente surge como uma resposta direta ao clima de desencanto e desesperança que tomou conta do país durante e após os anos de pandemia. Enquanto muitos brasileiros experimentaram distúrbios do sono, ansiedade e depressão em níveis alarmantes, o filme propõe uma reconexão com nossas capacidades internas de cura e transformação. É impossível não ver essa proposta como um ato político em si mesmo, em um período onde o obscurantismo tentou silenciar tanto a ciência quanto as tradições ancestrais brasileiras.
O documentário termina com uma nota de esperança que não soa ingênua, mas necessária. Ao celebrar nossa diversidade cultural e espiritual, e ao mostrar como a ciência moderna pode dialogar com saberes milenares sem hierarquizá-los, o filme nos convida a repensar não apenas como sonhamos, mas como vivemos enquanto sociedade. Em tempos de polarização extrema, esse documentário nos lembra que a integração de diferentes formas de conhecimento pode ser um caminho para um futuro mais lúcido e compassivo.
Para quem busca compreender melhor não apenas os mecanismos neurológicos do sonho, mas também sua dimensão cultural e espiritual, Criaturas da Mente oferece uma jornada fascinante pelas profundezas da psique humana e da identidade brasileira. Um documentário que, como os próprios sonhos, deixa mais perguntas que respostas – e isso é precisamente sua maior qualidade.