“A selvageria de meus raptores retratava um mundo onde os sonhos, na minha ausência, haviam se tornado ainda mais sombrios.”
Em 1989, eram publicadas as primeiras edições de Sandman, uma história escrita por Neil Gaiman e que acompanha Sonho, um dos Perpétuos. Entidades que representam conceitos, os Perpétuos são irmãos e irmãs responsavéis por ordenar aspectos da existência. Dito isso, a narrativa começa quando Sonho é aprisionado por cultistas que buscavam sua irmã mais velha, Morte. Três décadas depois, uma adaptação da obra precisaria, ao menos, realizar mudanças para se adequar à cronologia e às demandas modernas.
No primeiro episódio, vemos as consequências do aprisionamento do Sonho na sociedade enquanto o mesmo narra os acontecimentos, apesar de permanecer quieto por mais de um século. Intérprete do Sonho, Tom Sturridge aparenta ter sido a escolha ideal para o papel, a entonação, a fisionomia, tudo funciona. Também gosto bastante da iluminação que fizeram para replicar, nos olhos dele, o céu estrelado, algo saido diretamente do material-base. Uma vez liberto do cárcere, o Soberano do Sonhar retorna ao seu Reino apenas para encontrá-lo arruinado e abandonado, reconstruir as Ruínas do Sonhar demandará uma jornada através do mundo onírico em busca de três itens perdidos – uma algibeira, um elmo e um rubi.
Há um episódio dedicado à procura de cada artefato e todos parecem ser igualmente profundos e intrigantes. Em “Sonhe Comigo” conhecemos Johanna Constantine e John Dee, enquanto Sonho aparece sucinto em suas atitudes e palavras, são os dois integrantes do núcleo humano – e um adorável corvo – que mantêm o vínculo do espectador com a trama. Em “Uma Esperança no Inferno” vemos o duelo do Rei dos Sonhos com Lúcifer, interpretado por Gwendoline Christie. Entretanto, esse confronto é verbal, algo que pode parecer simplório mas que é filosoficamente denso e brilhantemente escrito. Em “Sem Parar” temos um capítulo à parte, num cenário mundano, a narrativa torna seu foco para as pessoas comuns e, entre elas, um indivíduo em posse de um poder imensurável decide ser o arquiteto de um novo mundo, David Thewlis está excelente nesse papel.
Recuperados os itens, a primeira metade da série culmina em seu melhor episódio, no início de “O Som de Suas Asas”, somos apresentados à Morte, que vem ao encontro de seu irmão mais novo para oferecer apoio emocional e lhe ensinar algumas lições importantes. Então, ela decide levá-lo para um dia de trabalho ao seu lado e durante quase vinte minutos, nos deparamos com diálogos repletos de sensibilidade e maturidade sobre a condição humana, a efemeridade da vida e até uma perspectiva otismita da morte. Kirby Howell-Baptiste, Intérprete da Morte, dominia todas as cenas em que está, ela é predominantemente alegre e empática, mas sabe também ser incisiva e séria quando necessário.
No meio desse episódio, descobrimos que, no passado, Sonho e sua irmã foram a um estabelecimento medieval observar o comportamento humano e, em meio à multidão, um deles se destaca por realizar um discurso acalorado sobre almejar a vida eterna. Morte, então, propõe a seu irmão conceder o desejo desse mortal e ver se ele mudará de ideia eventualmente. Esse indivíduo em questão é Robert Gadling, interpretado por Ferdinand Kingsley, tão carismático quanto a Morte, mas que serve de contraponto à mesma, uma vez que ama a vida e considera a imortalidade uma dádiva. Sonho se encontra com ele uma vez a cada século – e por mais de meio milênio – para saber se ele ainda quer viver mais, mas isso se transforma em um vínculo muito forte, um companheirismo atemporal.
Talvez seja um bom momento para pontuar que a série adapta dois arcos narrativos em uma única temporada – “Prelúdios e noturnos” e “A casa de bonecas” – e a ideia de unir ambos é boa e até necessária, mas não tão bem executada e a primeira parte está anos-luz à frente da segunda em quesito de qualidade. Sem tantas discussões filosóficas, um elenco fraquíssimo e uma estética visual esquecível, os últimos episódios ficaram aquém do esperado e aquém do que a própria série já tinha oferecido.
Tramas intercaladas se digladiam por espaço e eu não poderia me importar menos com a maioria delas, uma vez que envolvem personagens inéditos e, predominantemente, desprovidos de carisma. Entretanto, há momentos singulares em meio à demasia: Intérprete de Desejo, Mason Alexander Park está excepcional apesar de pouquíssimo tempo de tela, mal posso esperar pelos jantares de família entre os Perpétuos em temporadas vindouras. Além disso, o relacionamento entre Sonho e Lucienne só melhora com o decorrer da série, sempre bom ver os diálogos entre os dois.
Em resumo, a primeira parte é boa, a segunda parte é ruim e, tendo em mente as recentes alegações de Gaiman de que a série pode não ser renovada, isso me faz pensar se não seria muito mais adequado lançar somente os seis primeiros episódios e lançá-los semanalmente, no intuito de manter a unidade da série e assegurar sua repercussão ao menos por um mês inteiro nas redes sociais. Embora esse arco específico tenha sido decepcionante em vários aspectos, ainda considero essa uma adaptação bem-sucedida e o restante é bom o suficiente para me manter esperançoso com o que vem a seguir.