TN Entrevista | Mais uma entrevista de Flerte Flamingo

Reprodução: Aisha Faria/Divulgação

Escrever sobre Flerte Flamingo, na época em que decidi, de fato, escrever sobre Flerte Flamingo foi difícil. Em algum momento, nos últimos meses, achei que fosse se tornar mais fácil, mas, não, ficou mais complicado. Se há algum aprendizado em entrevistar artistas por quem se nutre afetividade é que, na verdade, quanto maior a admiração, mais complexo fica olhar para eles de forma objetiva. Ainda bem que objetividade nunca foi algo que busquei trazer por aqui.

No segundo semestre de 2022, no mesmo dia em que a entrevista com a Aquino e a Orquestra Voadora aconteceu, Leonardo Passovi se apresentava à frente da banda soteropolitana Flerte Flamingo. Um grupo que acompanho há cerca de cinco anos. Por isso, quando as atrações do selo Rockambole e Bolo de Rolo foram divulgadas no Cine Joia, não houve dúvida: Flerte Flamingo, Aquino e a Orquestra Voadora e Daparte? Um sonho para aqueles que acompanham a cena independente da Nova MPB. Não conhece? Calma, em breve vem conteúdo sobre essa galera.

Foi assim que esta autora comprou passagens de origem duvidosa para São Paulo. Afinal, quando uma banda que você acompanha há anos, originária de Salvador, uma das mais escutadas do seu Spotify nos últimos anos e que conquistou até sua mãe – que só entendeu quem seriam os entrevistados depois de ouvir “Ladinho”, e soltar aaaah animado – se apresenta por perto, mesmo que esse “perto” seja a 6h de distância, vale a pena correr o risco de ser parada pela Polícia Federal no meio da estrada por causa do ônibus de origem duvidosa, sim.

Chegado o fatídico dia, Flerte Flamingo carregava o fardo de ser a primeira banda da noite. Enferrujados? Desconfortáveis? Desconhecidos mesmo para parte daquele público? Talvez. A ordem das bandas fora trocada na hora, disse Leonardo Passovi, o frontman, vocalista da banda, usando uma camisa do Arctic Monkeys, que reconheci de stories pandêmicos e a qual me arrependi inúmeras vezes de não ter comprado no merch, enquanto conversávamos alguns meses depois durante uma ligação no Meet a qual tivemos que colocar fim depois de quase uma hora e quinze, porque não seria possível transmitir tudo em um artigo.

Seria mentira dizer que gostaria de colocar neste texto tudo o que Passovi contou. Entre entrevistadora e entrevistado, há uma troca singela, algo que há de ser guardado apenas para ambos. Diferente do que possa ter dado a pensar, caro leitor, esta entrevista não possui qualquer elemento constrangedor, íntimo ou trocas pessoais. Mas este artigo é diferente do anterior. Por ser on-line, a consciência da troca é menor porque a experiência é reduzida à tela, mas a sorte do leitor é que, diferente de muitos, o entrevistado por sua própria conta fala tão bonito quanto canta. A citação indireta de suas palavras seria ofensiva, e depois da leitura, você também há de concordar que Leonardo Passovi merece tamanho espaço.

Então comecemos pelo começo.

Após todo um dia de inquietude, dada a hora marcada, nenhuma mensagem de Passovi. A última que trocamos confirmava se o horário proposto lhe atendia bem. Com alguns minutos de atraso, recebo um áudio pedindo perdão pelo atraso, explicando que havia algo de errado com o horário no celular dele, que ele estava na rua, mas que logo chegaria em casa. Saiu correndo do shopping em que estava. “Não paguei nem o estacionamento”, me contaria depois E, após a leitura de outras entrevistas, sabendo que “Espero Que Você Entenda” fora escrita pelo mesmo para os colegas de banda para explicar o cancelamento de um encontro, logo pensei: “Vai meter um ‘Não deu pra ir, mas eu espero que você entenda’”. Mas, bem, se fosse para ouvir de alguém, que fosse do próprio.

Ao se apresentar — usando poucas palavras, decide tentar —, quem ele é se mistura invariavelmente com o Flerte Flamingo. É Leonardo Passovi, vocalista da banda desde 2015, que leva tal nome desde 2016 e único membro remanescente da formação original, apesar de um dos antigos ainda se fazer muito presente. Passovi canta, toca guitarra e escreve músicas. Emendando sua apresentação com a da banda, contou que eles “tem uma proposta muito casual, uma expressão casual da sensibilidade, tentando se manifestar através das ferramentas da música brasileira e a gente espera ser feliz fazendo os outros felizes também”. Uma boa apresentação, respondi – e com mais do que dez palavras. 

Quando perguntado sobre a volta aos palcos pós-pandemia, Passovi disse: “O último show da banda em Salvador fora na FACOM, Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Brasíla (UFBA)”. A incerteza sobre o público foi grande, contou, “porque como em 2018, nós estávamos acostumados a produzir nossos próprios eventos tinha o mesmo hall de duzentos, trezentos rostos que se revezavam nos shows. E aí antes de subir no palco a gente pensou ‘Talvez sejam as mesmas pessoas’. Talvez seja uma coisa meio triste, nostálgica […]”.

Para a surpresa da banda foi diferente. “Foi nada a ver. Um bocado de gente que a gente nunca viu na vida. Gente mais nova do que costumava ser. E muita gente, aí virou um inferninho porque o palco ficava no chão, mas tinha um degrauzinho, então a gente ficava no joelho das pessoas. E tinha gente de um lado, do outro, na frente, atrás, em cima, atrás em uma escada. A gente se sentiu abraçado pelo ambiente, pelas pessoas. Todo mundo cantando as músicas. Teve uma hora que o som morreu, só estavam faltando os amplificadores e as pessoas continuaram cantando a letra das músicas. Foi um negócio que nos tocou, assim. E aí ficou aquela sensação de inspiração. Talvez os caras tenham desligado o som pra ver isso acontecer porque depois eu vi isso acontecendo no mesmo lugar. Mas foi muito bom, foi muito divertido.”

Dos shows produzidos por conta própria para o Cine Joia, no entanto, não foi um pulo, ou, como dizem os bons, de primeira. Para Passovi, “é uma parada diferente. Tem um peso. Talvez seja o Circo Voador de São Paulo. Que por sua vez seja a Concha Acústica em Salvador. […] É a casa de show mais charmosa e importante pra cena alternativa”. Mas a apresentação foi a primeira com a nova formação da banda e o desconforto acabou evidente. “A ferrugem gritou dentro da gente. A ausência de subir em palco, tudo o mais. Pela distância do público, o palco bem mais alto, o público, portanto, mais distante. […] Eu não sei como eu conseguiria lidar com aqueles festivais que tem um fosso entre o palco e o público. Você não sente o calor da galera.”

Reprodução: Divulgação/Cine Joia

A diferença entre Salvador e São Paulo não diferem apenas neste quesito. Enquanto bandas de outros da região Sudeste e Sul do Brasil encontram pouca estranheza em transitar nos espaços comuns aos integrantes da Nova MPB, Passovi compartilhou uma diferença que deve ser observada, com algum cuidado, por todo aquele que faz parte e acompanha de perto a cena. “Em São Paulo, a gente sai do palco e tem gente querendo tirar foto”, conta ele. “Isso não existe em Salvador. Existir, existe. Mas é 10% de como acontece em São Paulo. O contexto é diferente, sabe, as pessoas enxergam isso como pessoas que fazem parte dessa comunidade. Em São Paulo as pessoas não se conhecem tanto, elas enxergam como artistas”. Não menciona isso como algo ruim, mas com uma consciência de si que ressalta a lembrança de quem sabe bem de onde veio.

Quando Passovi conta sobre um fã que viajou mais de 24h para assisti-los ao vivo em São Paulo, me diz que nunca imaginou que alguém viajaria tanto tempo para vê-los. Aproveito a oportunidade e conto que eu também saíra do Rio de Janeiro para São Paulo para vê-los. Conhecia as outras bandas, mas Flerte Flamingo era a razão principal da minha viagem. “Que honra”, disse ele. “Porque querendo ou não a gente olha e diz Flerte Flamingo é um artista, mais um que está ali na prateleira do Spotify, qualquer pessoa vai, clica e escuta. As músicas estão disponíveis em qualquer lugar do planeta, pessoas criam relações com essas canções que a gente não tem a menor ideia de qual profundidade tem. Mas no fim das contas, tinha ali um rapaz que viajou léguas e léguas pra ver a gente tocando as canções que eu escrevi aqui nesse quarto, na casa de minha mãe entre os 19 e 24 anos.”

O extraordinário visto no comum, em um jovem de 19 anos escrevendo músicas na casa dos pais, tem sido uma marca para a banda. O anseio atual para o audiovisual na atualidade, por exemplo, não é muito apelativo a Flerte Flamingo. “Sempre fomos mais fortes naquilo que é mais sincero. E agora somos muito mais fortes na questão inteiramente musical e auditiva que no visual”, explica Passovi. Há ainda uma dificuldade entre o meio e a mensagem. “Quando a gente tenta fazer alguma coisa, a gente consegue, só que, pô, não representa tudo que esse som transmite. E aí quando a gente vai ver as referências do que a gente mira, os artistas que a gente consome e fala que podia ser naquela linha, porra, quinze pessoas no vídeo. A gente faz tudo na tora. Nós quatro, dois às vezes comandando tudo. Aí contrata uma ou duas pessoas para fazer a porra toda. Vira a noite editando o negócio.”

Essa proposta não poderia estar mais de acordo com aquilo a que Flerte Flamingo se propõe. Em 2018, quando cogitava migrar para o Sudeste, Passovi pensava que tinha ser “A música pela música”. Não à toa as palavras “originalidade” e “autenticidade” foram as que mais apareceram na conversa: eram as coisas que mais importavam para ele como compositor. Flerte Flamingo, nas palavras de seu vocalista, se preocupa em “compor por humores”. Essa foi a forma que encontraram de se manterem fiel a si mesmos. Para ele, é a maneira mais eficiente de se aproximar de quem escuta. 

“Isso aqui é um tipo de música pra você ouvir no amanhecer na varanda, isso aqui é você numa avenida enorme de noite indo rápido num carro, isso aí é você indo sextar dez e meia da noite com o carro entupido de gente. Esse tipo de coisa conecta mais a pessoa porque quando você mira aí, você mira no tipo de sensação que a pessoa vai ter quando ouvir a música e não no tipo de artista que você acha que isso vai ter a ver. Porque aí você está muito mais suscetível a se distanciar do seu objetivo do que quando você quer transmitir humor. Música é transmitir emoção. A música é a única arte que você não consegue fugir dela. Em um filme, você fecha o olho. Um quadro, você vira pro outro lado. Se tiver alguma coisa fedendo, você tapa o nariz. Mas se tiver tocando uma música, você pode virar de costas que ela vai te pegar pelas costas. O ouvido você não consegue tapar ele totalmente. E vai escutar e vai te transmitir uma emoção direta.”

Por isso, é preciso reconhecer, para além de tudo, a autonomia de Flerte Flamingo que não foi colocado na cena, o que já é mais do que se pode dizer de outras bandas – que ainda é dominada por grandes sobrenomes e conexões extraordinárias com as quais meros mortais apenas sonham –, mas que se colocou e obteve ouvintes, espaço e respeito a partir da própria obra. E ainda há o que acrescentar: durante a entrevista, Passovi contou que vem coisa nova por aí, mas sem promessas quanto à data, mas os stories do Instagram da banda são promissores, pois parecem já estar em estúdio.

Sem financiamento externo, sem grandes labels, sem TikTok. Se Leonardo Passovi parece cantar enquanto fala é porque canta e escreve como fala. Com uma sinceridade a busca pela transmissão de experiências emocionais e sensoriais da própria vida humana, a banda é muito cara para aqueles que a escutam, mesmo que ainda distante dos line-ups e das casas nas quais merece tocar. Sobre isso, no entanto, não há com o que se preocupar, eles já chegaram e logo mais estão para além de lá, como é vasto e justo pensar. Afinal, como disse Passovi, “música é um ato de atrevimento e ousadia”, e isso, Flerte Flamingo tem de sobra.

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