Finalmente terminou a temporada de O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder (The Lord of the Rings: The Rings of Power) a gente já gravou o podcast, mas estou aqui para dar a minha crítica realmente sobre roteiro, atuação e toda a parte técnica da temporada inteira. Eu já havia realizado um artigo de primeiras impressões sobre os dois primeiros episódios, que você pode acessar clicando aqui, então não vou ficar repetindo apresentações sobre a série e nem o que já foi dito lá, mas tentarei aqui dar réplica às minhas expectativas apresentadas no artigo anterior.
Para quem não sabe, a série ela é uma criação da Amazon Prime baseada nos Apêndices de O Senhor dos Anéis, como você pode ver com mais detalhes num artigo que fiz só sobre isso. Vários estúdios e plataformas de streaming estavam havia anos querendo os direitos de adaptação da mitologia da Terra Média, mas a Tolkien Estate, organização criada pela família de Tolkien para organizar e proteger o Legendarium, negou a maioria das propostas – algumas bem ruins mesmo como reboot dos filmes pela HBO e até mesmo spin-off focados em personagens solo pela Netflix.
Como só poderiam ter direitos sobre os livros de O Hobbit e O Senhor dos Anéis, a Prime, que não poderia interferir no conteúdo apresentado nos filmes da franquia, só podia usar então o que não foi ainda adaptado, que são os flashbacks e conteúdos acerca da Segunda Era presentes no final de O Retorno do Rei como expliquei com mais detalhes lá no outro artigo. Assim, a proposta vencedora foi a de dar cinco temporadas para os cinco primeiros minutos apresentados no filme A Sociedade do Anel, que conta a forja dos anéis e a última aliança de homens, elfos e anãos contra o Sauron, durante a Segunda Era.
A apresentação de universo
Logicamente, várias mudanças tem de ser feitas e várias partes tem que ser acrescentadas como por exemplo a série começar na primeira era mostrando finalmente Valinor. Nós finalmente pudemos ver as Terras Imortais e o esplendor das grandes árvores, mas como a série não tinha os direitos sobre O Silmarilion e outros livros também focados na Primeira Era. Essa parte acaba sendo muito curta e até mesmo a destruição das árvores não é mostrada claramente -não vemos aqui a aranha primordial Ungoliant, mas sim, a sombra de Morgoth, o Deus Sombrio, sendo representada com uma silhueta semelhante a que foi criada para a armadura de Sauron nos filmes de Peter Jackson.
Assim, como na narração de Galadriel, os elfos que não tinham palavras para morte, foram para a Terra Média lutar a batalha contra Morgoth e passaram a ter então inúmeras palavras para esta. Após seu irmão, Finrod (Will Fletcher), ter sido morto – não foi mostrado que por um Lobisomem, apesar de vermos as marcas de garras – e marcado por Sauron, Galadriel assume sua busca pelo necromante e seus exércitos de orques por mais de um milênio sem resultados.
Os núcleos
Enquanto isso a gente vê que elfos fazem uma ocupação militar em vários territórios da Terra Média justamente caçando qualquer resquícios dos orque ou para saber se o os humanos lá se aliariam a Morgoth de novo até que o alto rei Gil-Galad (Benjamin Walker) dá a ordem e manda os elfos retornarem para Valinor para enfim ter seu descanso. Só que Galadriel não quer ir, porque ela está convencida de que o mal ainda persiste na Terra Média e foge da embarcação que a levaria para as Terras Imortais por seu coração não estar lá e é no mar que ela cruza o caminho com Halbrand e homens do sul que estavam fugindo após terem sido atacados por orques. Mostrando para Galadriel que ela estava certa, apesar de caçar numa direção diferente, ela deveria retornar para enfrentar o mal que crescia no Sul.
E é quando o caminho dos dois é cruzados por Elendil (Lloyd Owen), o capitão da marinha de Númenor, que é a ilha dada pelos deuses para a humanidade descendente de elfos que se ergueram sem contato algum com a Terra Média. A civilização que foi criada por Tolkien para ser como uma referência a Atlântida, Alexandria, Babilônia e outras grandes cidades consideradas ápice da civilização em seu tempo até que foram devastadas pela ganância.
Numa arquitetura que lembra muito Gondor, que é a cidade filha de Númenor no futuro, porém a beira-mar e sem o aspecto sujo e escasso presente na maioria das civilizações humanas dos filmes, o que acaba gerando certa estranha, é claro, principalmente quanto ao figurino. Galadriel então convence a rainha numenoriana Miriel a mandar seus guerreiros para ajudar a salvar seus parentes na Terra Média que estavam sendo atacados por orques e ali a gente vê pela primeira vez um pouco da vindoura última aliança entre elfos e homens que vai culminar naquela batalha que a gente vê no primeiro cinco minutos de O Senhor dos Anéis.
Ao mesmo tempo a gente também tem outros núcleos sendo desenvolvidos. Aqui houve uma adaptação, como a Segunda Era acontece muito em tempos diferentes e não necessariamente se cruzam, para poder ser contada de uma forma narrativa numa série, dois mil anos tiveram que ser resumidos. Assim, vemos personagens substituindo outros para poder dar soluções de roteiro.
Por exemplo, a própria Galadriel assumindo a posição de Gil-Galad, distanciando-se da imagem de feiticeira que estamos acostumados, mas aqui como uma amazona obstinada a combater o mal de frente, deixando o alto rei em posição mais diplomática. Ao mesmo tempo, o auge de Númenor que seria basicamente dois mil anos após a forja dos primeiros Anéis, aqui a gente vê ao mesmo tempo Celebrimbor (Charles Edward) ainda criando a alta forja de Eregion, o que nos leva aos anãos – que aliás, gostei muito de como aqui a tradução acertou em chamar de anãos e não de anões diferenciando a cultura da condição genética.
Com muito menos tempo de tela, os anãos muito bem representados pelo príncipe Durin IV (Owain Arthur) e seu pai, o rei Durin III (Peter Mulain), com todo seu amor pela divindade criadora de seu povo e forjador das montanhas, o ancestral Aulê, que é inclusive reverenciado através de canções e preces como no momento incrível representado por Disa (Sophie Nomvete), esposa de Durin IV. Aqui vemos o momento da descoberta do mineral Mithril, que é cobiçado por Gil-Galad por este pode quer, teoricamente, prolonga a permanência dos elfos na Terra Média que já estava chegando a seu fim, pondo assim todo o destino dos elfos na mão de Durin IV.
E aí ao mesmo tempo, também com pouco tempo de tela,vemos pela primeira vez os pés-peludos que são os antepassados dos hobbits que foram apresentados no começo do livro A Sociedade do Anel quando o Tolkien resolve dar mais informações a respeito dos hobbits. Esses antepassados nômades do Vale do Anduin muito bem protagonizados por Elanor Brandapé, uma personagem interessantíssima criada para a série e que nos lembra bastante as descrições de Belladona Tûk, sendo a primeira a ter contato com um ser celestial que poderia ser o destino da Terra Média.
Além disso, vemos pela primeira vez a retratação sobre a criação dos orques com Adar, assim chamado o pai dos orques, um dos primeiros elfos corrompidos por Morgoth e que se compadece da situação de seus filhos que não podem andar sob a luz do sol, elemento clássico dos livros, mas que foi ignorado nos filmes de Peter Jackson. Adar e seu povo uruk são motivados pela criação do estado de Mordor sobre as Terras do Sul, protegidos pela fumaça da Montanha da Perdição que cobre todo o céu e também a luz do sol. Nos dando aqui a cena mais incrível possível de seu surgimento, tomando de assaltado todo o povo das terras de sul que já haviam durado demais também.
Devo dizer que todo o núcleo de humanos, tanto em Mordor quando em Númenor, é a parte que mais poderia ser diminuída. É muito tempo de tela que poderia ser de anãos e pés-peludos gasto, por exemplo, com o filho de Pharazon (Trystan Gravelle), Kemen (Leon Wadlan), e com a irmã de Isildur (Max Baldry), Earien (Emma Horvath) que em nada contribuem com a história a não ser responder dúvidas que ninguém perguntou.
Como por exemplo quando Kemen chega para seu pai questionando o motivo pelo qual ele não está contrariando a decisão de Tar-Miriel de mandar guerreiros numenorianos para lutar pelos homens no Sul e este simplesmente tem de explicar para um erudito o que é uma decisão política ambiciosa, o que claramente acaba sendo só um diálogo forçado para explicar para o público as reais intenções do chanceler. A mesma crítica vale quanto a fazer mistério sobre personagem x estar morto ou não sendo que todo mundo sabe que será herói da guerra mais tarde. Se trabalhasse isso com os personagens inventados que estamos ganhando apreço, teria muito mais surpresa ou envolvimento emocional.
Mas achei interessante colocarem pelo menos quatro personagens para nos despistarem de quem poderia ser o verdadeiro Sauron, já que este estava desaparecido faz tempo. Adar, o pai dos orques, que tem um dos muitos nomes de Sauron, foi confundido como o Senhor das Sombras não só pelos elfos no sul, mas também por seu seguidores humanos.
O estranho celestial encontrado pelos pés-peludos, que também poderia ser o próprio, inclusive confundido pelas sacerdotisas com aparência élfica e necromante que estavam atrás do Senhor das Sombras, provavelmente introduzidas com esse visual super semelhante ás descrições do disfarce de Sauron, Annatar, inclusive como aparece nos jogos da franquia Shadow of Middle-Earth. E por último o próprio Halbrand, que apesar de ser reforçado por Galadriel que era o rei das Terras do Sul que estava fugindo de seus deveres, acabava por cumprir todas as ações descritas sobre Sauron em Númenor e Eregion segundo os Apêndices de O Senhor dos Anéis.
Atuação
Como a gente não tem muitos atores conhecidos, no máximo talvez os dois de Game of Thrones, Joseph Mawle (Adar) e Robert Aramayo (Elrond) que foram respectivamente Benjen Stark e o jovem Ned Stark; Nazanin Boniadi (Browny) que esteve em How I Met Your Mother e Ben-Hur; e Cynthia Addai-Robinson (Miriel) que foi a Amanda Waller no Arrowverso, que são inclusive os que entregam a melhor atuação.
Morfydd Clark (Galadriel) tenta muito replicar, não só o sotaque, mas as expressões de Cate Blanchett. Porém ao mesmo tempo tentando não parecer a Cate Blanchett e tudo bem. Ela é super carismática e é legal vê-la em tela. Já o resto do elenco que é mais desconhecido é todo muito fraco, e talvez por problemas de decisão da direção. Todo o elenco de Númenor tirando Tar-Miriel e o capitão Elendil é muito caricato, principalmente os mais jovens que parecem que acabaram de sair do teatro ou que deveria voltar para lá. O mesmo vale para os jovens do sul. Diferentemente dos anãos e pés-peludos que são mais caricatos de propósito mesmo, o que acaba nos dando muita alegria de vê-los em cena.
Devo elogiar Markella Kavenagh e Megan Richards que fazem respectivamente Elanor e Papoula convencendo completamente de que são duas jovens inocentes descobrindo um mundo muito gigante e trazem toda a atmosfera de Frodo e Sam. Especialmente com sua relação com o estranho que veio do céu que lembra muito também a relação de Gandalf com os dois protagonistas Bolseiros. Aliás, é bem clara a tentativa de replicar a atmosfera de O Senhor dos Anéis com os personagens apresentados aqui e ouso dizer que este foram os que mais deram certo.
A parte técnica
Vale dizer que a cinematografia foi super caprichada e isso não se dá somente ao investimento financeiro, mas também em muita dedicação da produção. Nós vemos shots muito bem planejados. Diferentemente do normal da maioria das séries que, para poupar tempo de produção, são gravadas com multi câmera no set, aqui foi produzido com o tempo e planejamento de um filme e com a locação externa real da Nova Zelândia que acaba dando uma grandeza também muito maior. Você tem também essa trilha sonora trazida pelo compositor Howard Shore que participou também de O Senhor dos Anéis. Aliás, muito dos produtores técnicos são da franquia do cinema.
A trilha sonora original continua incrível e épica, mas o que mais me emocional mesmo foram as canções originais como a de Disa suplicando para o espírito de Aule na Montanha, a cantada por Papoula sobre a migração dos pés-peludos que também fazia um paralelo com saída dos homens de Númenor para a Terra Média, e a última sobre os Anéis de Poder apresentada durante os créditos do último episódio. Mesmo com o tema de abertura de repetindo em quase todo momento épico envolvendo Galadriel não chegava a se tornar cansativo por ser gostoso de escutar.
Minhas críticas sobre a temporada num geral são mistas, o que pode ser normal já que é uma temporada de apresentação. A atuação geral ainda não é boa, o roteiro ainda precisa melhorar trabalhar seus núcleos e a direção ainda precisa acertar o tempo de tela para desenvolver cada mini-arco. A produção deve lembrar-se que é uma série com episódios disponibilizados semanalmente, mas que ainda assim é bonito de ver e super envolvente, embora tenha de ignorar o figurino numenoriano que destoa do resto. Porém, ainda espero que pode melhorar muito mais para a segunda temporada e que dê certo, porque fico muito feliz de ter conteúdo da Terra Média bem produzido.