E com esta citação nos é apresentada, Julie DemÍ, protagonista de Garota Inflamável, nesse intimista drama alemão. Dirigido e roteirizado por Elisa Mishto, premiada curta-metragista alemã, filme possui forte senso crítico, nos fazendo refletir sobre vontades e obrigações sociais.
Sinopse: A perspicaz e mimada Julie (Natalia Belitski) é uma jovem com seu próprio manifesto: fazer nada. Não trabalha, não estuda, não tem amigos. Agnes (Luisa-Céline Gaffron) é uma enfermeira casada e mãe de uma filha que se encaixa nas expectativas da sociedade sem pensar muito no tema… até que ela conhece Julie. Juntas, elas começam uma rebelião que vai levá-las ao limite dos seus respectivos mundos.
A primeira cena de Julie é mostrada com a personagem deitada na cama, de pés cruzados, roupa íntima e camisa social desabotoada, com todos os elementos em branco enquanto ela fala o monólogo escrito na citação acima. Ela está relaxando com os olhos fechados enquanto escutamos sua narração em off, os abrindo no final e dando um leve sorriso para câmera. Esse pequeno trecho já lhe mostra tudo necessário para entender seu modus operandi. O branco revela sua plenitude, o monólogo escancara como ela pensa diferente das pessoas e não seguirá um padrão imposto pela sociedade, e o sorriso escancara seu jeito inconsequente.
Em contra ponto temos Agnes. Em sua aparição é no hospital, mas a real apresentação dela é em casa, na cozinha fazendo comida para filha. Ela está preparando um macarrão pronto de latinha. Seu único trabalho é esquentar o alimento no micro-ondas. Ao servir a filha, a menina joga o prato no chão em repúdio. Agnes questiona o motivo daquilo enquanto o marido pega a criança no colo e menciona pedir pizza para amenizar a situação. Nesse ponto fica clara a relação conturbada dela com a prole. Contrastando com Julie, Agnes tem uma vida corrida, cheia de preocupações e dever civil, fora o elemento das cores totalmente conturbada, evidenciando ainda mais sua vida bagunçada.
Agnes é uma novata em um hospital psiquiátrico do qual Julie, por motivos incendiários, acabou de ser internada novamente. Apesar de Julie não apresentar nenhuma necessidade ou condição especial, frequentemente acaba por ter atitude dignas de tal interpretação. A história do filme começa oficialmente com Agnes sendo incumbida de ser a nova supervisora de Julie, uma pessoa misteriosa, intrigante e peculiar.
O filme tem um ritmo excelente. É um drama bem estruturado e com leves toques de humor. Afinal, Julie é debochada, com respostas afiadas e na ponta da língua para todas as situações com seu jeito implicante e provocador. Até mesmo quando ela responde uma pergunta seriamente – momentos extremamente raros – o ar de “tô nem aí” está presente. Esse jeito facilita muito na imersão ao filme. Você nunca sabe como ela responderá ao próximo, mesmo sendo algo banal ela pode perfeitamente brincar com a sua cara. Uma das cuidadoras menciona durante o filme “Julie mente”. E isso não é bem verdade. Ela fala a verdade na maioria das vezes, mas, ou é algo muito difícil de se acreditar, ou ela só está tirando onda com você.
A carga dramática vai para o lado de Agnes, que sofre com a maternidade perante a sociedade. Ela é incapaz de sentir afeto genuíno pela criança e, como resposta, a menina possui um comportamento difícil para chamar atenção dela. Agnes tenta com muita força se manter bem socialmente. Se uma boa mãe, responsável no trabalho, bem vista pelas outras pessoas, mas falha em todas elas. Seu esforço a torna infeliz. O encontro com Julie aos poucos vai mudando sua visão de mundo apesar das consequências. Agnes passa a invejar a situação da protagonista. Julie não precisa se preocupar com nada, pois tem uma herança gorda e está amparada pelos dizeres “ela é maluca”, mesmo não sendo. E aí está o ponto mais impressionante e desanimador desse filme ao mesmo tempo. desanimador.
Vamos começar pelo lado positivo. O passado de Julie respalda bem a visão de mundo dela. Segundo seu pai, havia uma pergunta essencial a ser feita: se hoje fossem eu último dia, eu gostaria de fazer o que irei fazer hoje? Se respondesse “não” por vários dias na vida ele mudava algo na vida. Há mais dois pontos muito cruciais na construção de caráter de Julie, mas são spoilers. Esses três pontos são o Norte para ela ser quem é, e, ao mesmo tempo, ter esse fascínio por Agnes e vice-versa, gerando um diálogo de confronto de ideias muito bom entre elas no meio do longa.
Agora vamos ao lado negativo. Toda essa incrível jornada não evoluiu Julie e, pior ainda, tornou Agnes parecida com ela. A sensação é agridoce, mas tendendo ao ruim. O final absurdamente aberto de Agnes acaba por significar nada. Julie continuou exatamente como iniciou, apesar de ter superado certas coisas. Como se não bastasse, todos os problemas emergidos por Julie foram para o espaço. A protagonista não passa por uma redenção ou pagamento de pecados. As consequências de seus atos ficam perdidas ao vento.
Garota Inflamável tem um texto muito bom, leve, com cenas perfeitamente capturadas e um clima amistoso apesar da proposta. Atuações perfeitas! Todas! Julie poderia ser facilmente chata, mas Natalia Belitski conseguiu construir um personagem implicante sem ser irritante. Parabéns. Outro destaque vai para o ator Giuseppe Battiston, interprete de Rainer. Seu personagem é incrivelmente carismático mesmo não tendo falas. Como nem tudo são flores o filme falha nos 45′ do segundo tempo. Bem no finalzinho mesmo. Seu encerramento não condiz com toda aquela jornada mostrada e isso é uma pena.