Brasil, 2020. Pandemia, desgoverno, luto. E luta. O Brasil de 2020, hoje, se parece um pesadelo coletivo, que, enfim, caminha para seu fim, com pequenos vislumbres de esperança. Entretanto, quais marcas se mantêm dos últimos dois anos?
Esta é a temática do mais novo álbum de estúdio de Criolo, Sobre Viver (2022), que trabalha de forma magistral e poética a dor, as mazelas sociais, a luta e, por fim, a esperança na rotina brasileira.
Criolo, que foi professor por 12 anos em escolas de São Paulo, faz deste álbum uma ode às artes. Não obstante, seu próprio álbum é uma síntese da importância das artes e da educação em nosso país. Com olhar afiado e instinto apurado, Criolo faz uma análise paradoxalmente dura e esperançosa dos últimos dois anos vividos em nosso país.
Aqui quem fala é um sobrevivente
Abrindo o álbum com a faixa Diário do Kaos, parceria com o duo Tropkillaz, o artista explora de maneira profunda, doída e com voz, por vezes, teatral, todo o desespero do luto vivido por um povo que sofre, diariamente, a perda de seus amados; perda que remete à pandemia da COVID-19, da violência policial, do ciclo de violência contras as minorias do Brasil. Criolo, ao dizer que é um sobrevivente, passa as marcas de quem sobrevive à guerra diária da fome, da desigualdade, do descaso.
Sua crítica trata, também, as redes sociais, quando os alerta que entre tantos rostos, tantos likes, continuamos sendo “nada, nada, nada” para o sistema que tem nos regido.
Ao fim, Criolo faz renascer a esperança que ele encontra no rap. Declarando que este é o único capaz de o afastar do canhão (tendo diversos desdobramentos sobre o que seria o artefato aqui pontuado). O artista inicia, então, a jornada com um misto da dor e, também, da esperança que insiste em reaparecer em tempos de caos.
Pretos ganhando dinheiro incomoda demais é a faixa que aponta o jogo entre a ascensão da comunidade preta no Brasil e como o modus operandi espera que pretos continuem vivendo o ciclo racista da vida de crime e viela pequena. O ciclo definido por Criolo como a infindável guerra faz um apelo à necessidade de políticas públicas que invistam em educação, a partir dos versos esperançosos que cantam sobre a revolução que virá através da arte e educação. Criolo também aponta a hipocrisia de um status quo que dá valor ao capital, mas que dita quem são os indivíduos que podem possuí-lo.
Sendo um artista ligado à causa da educação, Criolo traz à tona a realidade infanto-juvenil da população preta na faixa Moleques São Meninos, Crianças São Também. O compositor aborda o olhar social sobre os “moleques” que são negligenciados pelo Estado, vigiados e julgados pela mídia e esquecidos por nós. Com o verso “onde o Estado não chega, o crime traça o norte”, Criolo tece duras críticas à falta de incentivo dos órgãos públicos em relação aos nossos meninos. Quando não há escola, afeto ou esporte, nossos meninos se tornam vulneráveis às mazelas sociais que rondam essas realidades. Esta faixa, para todos aqueles que se comovem com a realidade infantil no país, é um prato cheio para reflexões e análises sobre um território onde crianças e adolescentes negros de até 14 anos morrem 3,6 vezes mais por armas de fogo. No país de Agatha, Kaio, Rebeca e Emily, Criolo chora, em versos fortes, o descaso que atinge essas crianças em todos os espaços.
Sobre Viver se trata, entre tantas coisas, de fé e esperança. Ao iniciar a faixa Ogum Ogum com um verso bíblico, Criolo e Mayra Andrade, cantora cabo-verdiana, denunciam a intolerância religiosa no Brasil, mas trazendo à mesa o orgulho e a esperança que envolvem as religiões de matrizes africanas. Nesta conexão entre diáspora e África, a faixa se eterniza pelos versos de insurgência e resistência sobre o orgulho que desafia as estruturas intolerantes. Os versos declaram que são mistura, doçura, beleza, candura, festa, cura e a mágoa da estrutura coercitiva na qual estamos inseridos. Mayra, que é convidada de Criol no Rock In Rio 2022 traz poder e leveza através da voz. A faixa se torna um hino de orgulho e resistência.
Com poder para se tornar um clássico da música brasileira, Sétimo Templário tem ares de um épico sobre o Brasil nos anos de 2019 a 2022. Aqui, Criolo utiliza uma poética direta, que cutuca a ferida que é a nação brasileira durante o atual governo. Sem papas na língua, são denunciados o racismo, o genocídio da população preta e dos povos originários brasileiros. Se havia dúvidas sobre o que os últimos quatro anos significaram para o cantor, Sétimo Templário revela de maneira magistral. Esta é uma canção com um potencial gigantesco para se tornar um clássico na história da música brasileira. A faixa é um documento cantado sobre um dos períodos mais complicados do Brasil. Há tanto para se falar, tanto para se expor, analisar, refletir sobre os versos compostos por Criolo e o duo Tropkillaz que faltam palavras para definir o hino produzido. Com referências da literatura clássica unidas à realidade, Criolo entrega o que nós gostaríamos de cantar (gritar) a plenos pulmões. É o retrato de todas as dores e mazelas sofridas nos últimos tempos. Certamente, aqui está a denúncia mais acurada do Brasil do retrocesso.
A ilustre presença de Milton Nascimento deixa este álbum ainda mais firme na posição de clássico musical. Me Corte na Boca do Céu A Morte Não Pede Perdão é profunda, densa e melancólica. A voz de Criolo em conjunto com a voz de Milton se torna ainda mais potente ao coroar o álbum com a narrativa real e crua da vida. Impossível não se emocionar com o crescendo da música, onde versos de dor e esperança, muito presentes em toda a obra, marcam presença. Aqui, é interessante apontar o sincretismo religioso que permeia toda a música. Em tempos onde há a comercialização da fé, a canção não se limita no uso de simbologias religiosas que inúmeras vezes podem se tornar instrumentos de coerção. Entretanto, Criolo e Milton misturam esses elementos a fim de contar uma história, a fim de escancarar a realidade.
A autoria de Criolo e do duo Tropkillaz dá certo mais uma vez. O artista declarou, recentemente, que é preciso falar sobre a esperança, mas é impossível não falar das outras coisas que também fazem parte do nosso ciclo. Yemanjá Chegou é trabalhada, musicalmente, de forma mais suave. Entretanto, a lírica critica de forma contundente e factual a desigualdade, o desprestígio e o descaso direcionado aos jovens pretos e aos professores brasileiros. É essencial encontrar e compreender como a narrativa de Sobre Viver perpassa o ambiente educacional, onde Criolo tanto esteve presente. As declarações sobre a chegada de Yemanjá trazem uma esperança aguardada por aqueles que lotam as vans, às quatro da manhã, que batem o cartão e precisam, dia após dia, (sobre)viver aos subempregos do cotidiano. Yemanjá chegou, menino-rei. Esperança vem!
Em meio à pandemia do coronavírus, o cantor perdeu sua irmã mais nova. Esse episódio dá luz à faixa Pequenina, composta, também, por MC Hariel, Liniker, Jaques Morelenbaum e sua mãe. Criolo entende que a poesia é a forma de honrar sua irmã, quem ele cuida apenas em prece. Os versos de Liniker declamam a necessidade de se impor entre os “donos do mundo” através do poder aquisitivo. Aqui, retomamos às falas de Criolo que criticam o capitalismo, mas que entendem, tristemente, que respeito e presença são garantidos apenas através do capital. A irmã de Criolo, Cleane, foi vítima da COVID-19, vírus que interrompeu 664 mil vidas no Brasil. Este é o retrato puro e fiel de uma pandemia que poderia ser menos letal, se tivéssemos suporte e investimento governamental a tempo de impedir tantas mortes.
Quem Planta Amor Aqui Vai Morrer é linguisticamente interessante. A canção é composta pelo que Lélia Gonzalez chamaria de pretoguês. O conceito criado pela escritora e filósofa traz a riqueza, a complexidade e a beleza da Língua Portuguesa através do modo falado da língua. Lélia trabalhou este conceito em relação ao preconceito linguístico direcionado ao povo preto no Brasil, por falta de acesso à língua normativa. A beleza de Criolo aqui se faz ao ir às raízes da nossa fala. Além do trabalho linguístico produzido por Criolo, a lírica da canção trata de um espaço onde o amor não tem lugar. Brasil não é playgrau / num mosca pussevê / vão tentá te matá / se cê for diferê / quem planta amô aqui vai morrer. Estes versos sinalizam como o afeto e o cuidado são escassos em nossa sociedade, levando à triste constatação de que quem ainda os cultiva não tem espaço. Mais uma vez, o sal é jogado na ferida de um país que investe nos preciosismos judaico-cristãos, mas não leva seus mandamentos à prática na vida real.
A décima e última faixa é um hino misto. Aprendendo A Sobreviver fala sobre a esperança, o amor, mas não se deixa esquecer sobre as complicações da vida. O álbum é finalizado com batuques, ritmo dançante e um Criolo que está aprendendo a sobreviver em um ambiente hostil, mas sem deixar que a desesperança tome conta do meio onde está. O ódio e o love de Kunta Kinte nos rodeiam. O mundo não é preto no branco, mas cheio de tons de cinza. A realidade é dura, mas ainda há quem procure encontrar amor, afeto e esperança entre tanto caos. Criolo canta a vida onde a morte se faz rotina. Assim, o álbum se encerra com todas as nuances de uma vida comum.
Criolo, em Sobre Viver, nos leva a uma jornada de luto e luta. De amor e ódio. De utopia e realidade. Seu novo álbum é uma ode àqueles que estão aprendendo e reaprendendo a sobreviver em seus lares desfeitos pelas mazelas nacionais, pelo luto oriundo de uma pandemia. É uma ode àqueles que não desistiram, mesmo em meio a tudo o que se tem vivido nos últimos quatro anos. Criolo dá um grito de desespero e fé do início ao fim. Felizmente, este grito foi ouvido e recebido por nós.