As produções cinematográficas independentes seguem resistindo ao atual cenário brasileiro, onde há um forte projeto de sucateamento do incentivo a cultura e da diminuição do fomento ao audiovisual nacional. E recentemente, estreou no serviço de streaming Amazon Prime Video o longa metragem nacional “A Gruta“, dirigido e produzido por Arthur Vinciprova, já conhecido por trabalhos como “Rúcula com Tomate Seco” (2017), e “Turbulência” (2016).
Ver produções investindo no gênero de terror é muito bom, pois o gênero é pouquíssimo explorado nacionalmente. Entretanto, a narrativa criada em “A Gruta” esta longe de ser uma das melhores, sendo extremamente decepcionante e nada convincente, podendo soar até mesmo constrangedora para algumas pessoas.
A trama percorre em dois momentos, sendo um deles com a Helena, personagem interpretada por Carolina Ferraz. Helena é uma freira que é contatada por uma delegada para ajudar em uma investigação em torno de um jovem chamado Jesus, personagem interpretado pelo próprio diretor Arthur Vinciprova. O outro momento acompanha Jesus, o único sobrevivente de um grupo de amigos que exploravam juntos uma gruta, onde diversos acontecimentos aterrorizantes tomam conta. Jesus se recusa a colaborar com a investigação e alega que só vai prestar qualquer esclarecimento diante de uma freira.
Enquanto seguimos Helena, temos as melhores tentativas de fazer um filme consistente, pois ela é realmente uma personagem interessante, carregando seus vícios e um passado misterioso. Mas acaba que ela não é devidamente explorada da forma que deveria, sendo até questionável sua relação com os personagens da trama. Por outro lado, o que chama bastante atenção é a cenografia que integra junto de Helena, a igreja onde ela passa maior parte do tempo é um verdadeiro destaque com diversas peças religiosas, e seu interior lembra bastante igrejas antigas de arquitetura barroca, que são muito bonitas por sinal.
Quando é dado espaço para os acontecimentos da gruta, o filme tropeça com gosto. Primeiro pela queda vertiginosa de atuação, onde todos os personagens do grupo da gruta parecem robóticos, com uma atuação bem engessada. Até mesmo uma encenação simples de briga, que por sinal ocorre de forma bastante forçada, é mal coreografada que você não consegue entender se houve uma tentativa do personagem executar um soco, um tapa, ou se foi apenas um carinho no rosto.
Quase todos os acontecimentos da gruta não parecem ter verossimilhança, e é tão desordenado os cortes que você facilmente se perde na continuidade das cenas, pois justamente elas alternam com bastante frequência entre Helena e Jesus e o seu grupo. Os esclarecimentos referente aos mistério da gruta e o por que parte dela estava interditada também deixam a desejar. As cenas, os diálogos aparentam ser mal encaixados, como se tivessem com pressa de caber tudo dentro do limite de corte final. Inclusive a cena de abertura do filme, que pra mim o grande ponto alto do filme, parece se desconectar com o tudo o que ocorre, pois não há nenhuma profundidade.
[AVISO: Os parágrafos a seguir podem conter spoilers sobre a trama]
Com tantas falhas, ainda houve tempo para certa insensibilidade diante das religiões de matrizes africanas. Pois, além de termos um personagem com nome Jesus e um forte apelo a igreja católica, muitas das vezes o personagem trata os acontecimentos da caverna como o verdadeiro mal, mal esse que é originário de um culto satânico que se originou por escravos que conseguiram fugir dos seus senhores e conseguiram se manter vivo dentro da gruta graças a essa entidade. Ou seja, o filme acaba colocando a igreja católica como um contraponto positivo, ou “o bem”, diante de um culto africano categorizado como “o mal”.
Esse tipo de exposição gerada num longa metragem de forma descuidada é muito perigoso. Pois, em pleno 2020, ainda existem diversos relatos de intolerância religiosa nos terreiros de matrizes africanas, que sofrem ataques constantes apenas pela prática da mesma. E muitos do que atacam não fazem sequer ideia de que tipo de culto é realizado nesses locais. Por exemplo, o Candomblé cultua as forças da natureza, como personificação de ancestrais divinos, além de compartilhar, após séculos, forte sincretismo religioso com a própria igreja católica.
[Fim dos spoilers]
Pra dizer que não houve bons destaques, a trilha sonora é boa, mas infelizmente ela é seguida de tentativas de cenas bem clichês para causar o famoso jump scare. A fotografia ela não surpreende, mas se destaca quando está fora do breu da caverna, principalmente nas cenas da igreja.
A impressão que eu tenho que “A Gruta” é um filme terminado nas pressas, que tenta explorar muita coisa, mas acaba se atrapalhando e não explorando nada. Alguns dos seus problemas poderiam ter sido evitados apenas se tivessem realizado alguma consultoria com profissionais pretos que estudam e vivem religiões de matrizes africanas.