Todos sabem que a série Todo Mundo Odeia o Chris, criada por Chris Rock, é baseada em suas experiências vividas e cheia de críticas, algumas visíveis e outras nem tanto, por isso vamos começar a analisar alguns momentos e falas “criticamente importantes”. Começando pelo personagem principal da série, Chris, que precisa ir para uma escola em outro bairro e o fato dele ter que se deslocar para longe, necessitando de dois transportes é o retrato da educação precária em bairros mais pobres e de população majoritariamente negra. E esse fato fica nítido quando Chris decide ir à escola do seu bairro e percebe que lá a violência é bem pior. Importante ressaltar aqui é que Chris é o único aluno negro da escola.
Com menos de 14 anos de idade, Chris, além de estudar precisava trabalhar para se manter, o que dificulta ainda mais sua caminhada e o colocava há cinco passos atrás dos colegas brancos de sua escola.
A educação precária consequentemente implicava no pouco acesso a cultura dita erudita, que estava destinada aos brancos. Isso fica evidente no episódio em que Rochelle leva Drew e Tônia ao museu e passam minutos encarando um quadro sem entender e a Rochelle explica com uma única frase: “é arte!”. Além disso, ao participar da feira do livro de Tonia, Rochelle nota que um menino coloria um livro e o critica dizendo “meninos brancos na sua idade fazem esculturas”. É inegável a existência da restrição e desigualdade de acesso, e a precariedade entre os próprios negros.
Falando em Rochelle, mãe de Chris, o fato de ela ser “pobre e soberba” diz muito sobre o quanto o negro em sociedade precisa sempre se reafirmar enquanto GENTE. O fato da personagem se preocupar extremamente com sua aparência e com a de sua família mostra que ela entende o que é ser negra e entende que a sociedade cobra de maneira cruel e absurda dos negros a ponto de qualquer falha se tornar motivo de maior discriminação. Rochelle não é soberba, é apenas uma mulher negra que não quer que sua família sofra mais preconceitos do que já sofre.
Já Julius, pai de Chris, é o personagem que representa o patriarca típico que passa mais tempo fora de casa trabalhando do que com a família, visto que precisa sustentar a casa e os filhos. Assim como mais dois homens do bairro, pois segundo a narração de Chris, naquele bairro só existiam mais três pais. Provavelmente as famílias eram constituídas, em maioria, por mães solteiras, vítimas de maridos que abandonam o lar após gravidez. Nesse momento vale lembrar do episódio que o Chris dirige até a escola com o carro de seu pai e sua professora reage com “fiquei sabendo que você tem um pai… legal!”.
E agora falando em discriminação, a escola do Chris é o lugar onde as diferenças são gritantes. O único negro da escola é alvo de racismo velado e escancarado, e falas preconceituosas de sua professora que com frases recheadas de racismo consegue formar exatamente o estereótipo do que a sociedade enxergava e até hoje enxerga o que é ser negro. A professora é o típico perfil de branco que faz parecer que conhece e respeita a cultura negra, mas que na verdade só a ridiculariza e estereotipa.
Além de pré-conceitos, a Senhorita Morello, professora do Chris, mostra a todo tempo o quanto o negro é objeto de sexualização e fetiches já que mesmo sendo claramente racista, fantasia e se envolve com um homem negro sempre que pode.
Agora entrando em Bed-Stuy, “só louco vai”, alguns objetos e presentes que os moradores do bairro podiam comprar eram fornecidos pelo personagem Perigo, responsável por vender mercadoria roubada. Os objetos vendidos eram o mais próximo que podiam ter de mercadoria de qualidade com preço baixo, o que até hoje é fornecido pelo camelódromo que dá a oportunidade das classes menos favorecidas de adquirir produtos bons (genéricos ou não) por um preço acessível.
A violência policial, a meu ver, é o ponto mais gritante ao longo da série, quase todos os episódios retratam o quanto a polícia era racista e que sua serventia era apenas para os brancos. Inclusive, no episódio em que Drew e Chris estão dados como desaparecidos, Rochelle liga para a polícia e a primeira pergunta é sobre a cor deles. Ao responder que são negros o policial informa que ela ligou errado, já na segunda tentativa, Rochelle informa que os desaparecidos são brancos e na mesma hora a polícia bate em sua porta, dispostos a ajudar.
Sem contar os episódios que relatam falso flagrante e o fato da polícia identificar um criminoso pela cor da pele e não pelos atos cometidos. O que deixa nítido que independente da pessoa, se fosse negra seria presa tendo cometido ou não o crime. E como exemplo, relembro aquela clássica cena que mostra o que o policial ouvia da testemunha “ele era negro e negro, negro negro negro, e usava negro… e mancava negro e aqui também negro e andava negro”.
Muitas cenas apresentam a dura realidade do racismo estrutural e escancarado, e as críticas sutis que podem passar despercebidas, como no episódio “todo mundo odeia a linguiça” que apesar de bastante engraçado é um tanto quanto triste. E se você parar para pensar no fato de que por dificuldade financeira muitas vezes é necessário recorrer a um tipo de “estoque” de um único alimento, por motivos de desconto e/ou promoção, para não deixar de sustentar os filhos e a si próprio. A linguiça pode ser também a salsicha, o ovo, o miojo, a sardinha e tantos outros alimentos baratos que costumam estar diariamente presentes na mesa de várias famílias pobres, inclusive conhecem pessoas que não conseguem comer certos alimentos por se remeterem a infância difícil onde só tinham aquilo para comer.
Ainda falando sobre a forma sutil que a série apresenta duras críticas, o episódio em que o Chris entra para o jornal da escola, tem seu primeiro artigo completamente rejeitado pela professora e pela aluna responsável do jornal que diz que não quer ler sobre um “Romeu velho seboso do gueto”, já que o artigo contava as histórias amorosas de Dock e então o Chris reescreve o artigo e muda completamente o papel, tornando o tal “Romeu do gueto” em assassino, após essa mudança a professora e a aluna do jornal passam a amar o artigo e todos se surpreendem de forma positiva e negativa. O interessante a se observar nesse episódio é como a construção do negro dentro de uma narrativa deve ser e é sempre inferior. Ao longo da história o negro nunca esteve em papel principal enquanto sujeito, mas sempre como objeto, sendo coadjuvante ou antagonista em papéis de bandido, assassino, serviçal, etc (o currículo diversos atores negros não me deixa mentir). O fato do “Romeu do gueto” não ter agradado é retrato de uma sociedade racista que não aceita o negro como personagem principal dentro de uma narrativa. O papel de mocinho e bandido carrega valores que estão ligados diretamente a raça e classe social, e infelizmente isso ainda se estende em filmes, animações e novelas.
Por fim, devo dizer que a série faz constante contrastes entre a vida de negros e brancos, e a desigualdade é gritante. Em um episódio, os amigos Chris e Greg querem ir a um show, mas precisavam ser maiores de idade, Chris sugere ao Greg que arrume os documentos falsos com a seguinte justificativa:
“(…) porque se você for apanhado com identidade falsa só vai fazer serviço comunitário, se eu for pego com identidade falsa vou para cadeia junto com o cara que atirou no presidente”
Essa fala em específico explica de forma objetiva e até mesmo cruel de como essa distinção entre raças funcionava e ainda funciona na prática.
Quando o assunto é série dos EUA com temática racial, Todo Mundo Odeia o Chris tem o meu favoritismo pelas críticas, piadas e construção dos personagens. E é triste e revoltante analisar cada episódio e perceber que mesmo vivendo em época e sociedade diferentes que o Chris, o racismo, desigualdade entre classes e a violência policial ainda assombram os nossos dias.
A série está disponível nas plataformas GloboPlay e recentemente entrou para o catálogo da Amazon Prime.