Se você não foi congelado por uns 70 anos como um certo escoteiro por aí, provavelmente você já deve ter ouvido falar sobre Infiltrado na Klan (Blackkklansman), filme ganhador de Melhor Roteiro Adaptado no Oscar 2019, dirigido e co-roteirizado por Spike Lee que é baseado no livro autobiografia de Ron Stallworth chamada Black Klansman. Não quero lhes frustrar caso estejam esperando uma crítica técnica sobre o trabalho de Spike Lee, não é a intenção desse texto, mas sim contextualizar sua importância de narrativa com alguns acontecimentos recentes.
Em uma Colorado Springs setentista, o enredo do filme segue Ron Stallworth (John David Washington), detetive afro-americano numa jornada de infiltração na Ku Klux Klan. Nos dias modernos tal façanha soa absurda, mas a própria forma de sigilo e comunicação do grupo na época davam aberturas para impostores. Ron tem ajuda do seu colega Philip “Flip” Zimmerman (Adam Driver) para investigar o grupo.
Spike Lee retrata por aqui diversas formas de como funciona o pacto da branquitude na manutenção do racismo, assim como o comportamento supremacista do grupo KKK. Tendo isto em mente, citarei alguns pontos importantes que evidenciam esses momentos (não necessariamente na ordem cronológica do filme).
Como já dito, Ron Stallworth é um oficial da Colorado Springs e mesmo ele sendo adicionado a corporação ele é tratado com inferioridade pelos demais companheiros, chegado ser comparado com outros criminosos cujo compartilhava a mesma cor de pele, através da expressão toad (sapo). Assim como usam da sua cor para se infiltrar em grupos de ativismo de direitos civis da população preta, buscando qualquer frase mal interpretada para incriminar líderes de movimentos. Prática comum da branquitude é de tentar confundir os negros. Pergunte-se quantos já furaram a quarentena durante pandemia de Covid-19 por motivos fúteis e quem são os mesmos que estão reclamando sobre as manifestações antirracistas e antifascistas por aqui no Brasil, pelo mesmo motivo? Qual parcela da população é mais afetada pela Covid-19 e mesmo assim, continua tendo que lidar com operações policiais ceifando suas vidas mesmo dentro de suas casas? Essa barbaridade aconteceu ao menino João Pedro de apenas 14 anos, morador de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Durante o filme há dois casos de abordagem policial que retratam bem o quanto a polícia não serve a população preta. Após efetuar uma infiltração de escuta numa palestra organizada por Patrice Dumas (Laura Harrier), universitária e ativista das causas civil e Kwame Ture (Corey Hawkins) membro dos Pantera Negra. Ron infiltrado, capta informações fora de contexto de Kwame pedindo para que as pessoas se protejam pois uma guerra pode está por vir, com essa informação já foi o suficiente para outros colegas de corporação do Ron fazer uma abordagem dura contra Kwame e Patrice, pedindo que ele se retirasse de Colorado Springs e durante abordagem chegaram a tocar em Patrice sem o seu consentimento.
Já na outra cena, próxima ao clímax do filme, Ron tenta desarticular um plano de atentado da KKK e apreender a esposa de Felix Kendrickson (Jasper Pääkönen), um dos membros do grupo. Um policial a paisana acaba chegando no local e ao invés de ajudar a deter a criminosa ele se vira quase de imediato contra o Ron, achando que ele era algum tipo de agressor e ignora os alertas de que ele era um policial também e não verifica seu distintivo. Essa cena me remete a um episódio da série Brooklyn-99 onde o Sargento Terry Jeffords (Terry Crews) passa por situação similar, onde por apenas estar correndo um policial efetua uma abordagem agressiva sobre o mesmo e ignora seus alertas de ser um policial também. Fora da ficção esse tipo de abordagem ainda é bastante comum principalmente entre população preta e latina. No dia 25 de Maio de 2020, George Floyd, um afro-americano de 46 anos foi assassinado por um policial branco de Minneapolis, Derek Chauvin. Durante a abordagem o policial imobilizou Floyd no chão e causou a morte do mesmo após sufocá-lo ajoelhando-se em cima do pescoço da vítima. Floyd não portava nenhuma arma e não resistia a ação policial, seu único pedido era que pudesse respirar.
Após quase serem descobertos no disfarce durante uma reunião na casa de Felix, Ron confronta Flip ao descobrir que o mesmo é um judeu e o do por que ele não se opõe da mesma forma, aceitando todas as ofensas. Flip responde que aquilo é trabalho para ele e não uma cruzada. Cenas posteriores Flip consegue se abrir para Ron dizendo que aquelas coisas não entravam na sua cabeça pois foi criado como fosse um branco normal e não como um judeu, sem traços da sua cultura ou religião. Essa cena representa muito bem a perda da identidade cultural dos povos oprimidos pelo racismo. Principalmente aqui no Brasil, onde muito de nós não sabemos nossas origens. Lembre-se a África é um continente não um país. Muito do que possuímos hoje foi passado graças a nossa tradição ancestral da oralidade.
Em um diálogo com o Sargento Trapp (Ken Garito), ele comenta com Ron sobre um amigo que acompanha a KKK e diz que o grupo quer se tornar mainstream, ou seja eles querem sair das sombras, se tornando popular. Nesse momento surge o nome de David Duke (Topher Grace), Grand Wizard da Klan, principal expoente que traria essa evidência pro grupo. O Sargento Trapp ainda comenta que o mesmo sempre anda bem trajado, tirando a visão de encapuzado. E exemplifica para Ron: Uma nova maneira de vender o ódio.. Pense nisso.. Ação afirmativa, imigração, crime, reforma tributária.. Ninguém quer ser chamado de fanático.. A questão é, americanos todos os dias poderiam aceitá-los, apoie isso até que um dia eles conseguem alguém na Casa Branca que possa incorporar suas ideias. Ron acaba rindo e dizendo que os americanos não deixariam isso acontecer.
A cena citada acima, exemplifica muito bem quando muitos se perguntam como esses caras chegaram no poder?. É justamente desta forma, trabalhando nestas pautas, de forma similar, os estadunidenses elegeram Donald Trump, assim como nós brasileiros elegemos Jair Bolsonaro.
Esse mesmo momento citado reforça muito bem as cenas finais do filme. Saímos dos anos 70 e vamos direto para momentos de 2017 em Charlottesville, Virginia, após manifestações violentas de supremacistas brancos ligados à extrema direita, onde o presidente já eleito Donald Trump cita o seguinte discurso após o ocorrido: ...Nem todas essas pessoas eram nazistas, nem todas essas pessoas eram supremacistas brancos. Também tinham pessoas que eram pessoas muito boas. Após o assassinato de George Floyd, manifestações antirracistas ecoavam pelas ruas americanas, pelos direitos civis da população preta e pela prisão do policial branco. Novamente supremacistas brancos deram as caras querendo fazendo ameaças enquanto policiais mantinham também posicionamento ofensivo contra os manifestantes. No dia 01/06/2020 O Presidente Donald Trump decidiu que iria classificar organizações ANTIFA (grupo opositor ao Fascismo) como ameaça terrorista através de sua conta no Twitter. O Presidente Jair Bolsonaro, que segue sem um Ministro da Saúde em atividade durante a pandemia de Covid-19 retuitou a mensagem em apoio.