O diretor Robert Eggers parece possuir um grande interesse pelo paganismo para narrar histórias sobre relações humanas. Em seu longa-metragem de estréia, A Bruxa (2016), o diretor utilizou-se da bruxaria para tecer uma narrativa sobre aceitação da feminilidade como forma de libertação. Agora, em O Farol, Eggers retorna a se banhar pela literatura pagã para falar a respeito de gênero, no entanto, o diretor volta sua atenção à mitologia grega para estabelecer uma narrativa em torno da masculinidade como forma de destruição das relações humanas. Apesar destes dois filmes tratarem perspectivas de gêneros opostos, Eggers pretende analisa-los de um ponto de vista social, deixando a sensação de complementariedade entre estas obras. Se em A Bruxa a libertação da protagonista só ocorre quando ela se aceita enquanto mulher e caminha para a floresta para viver com as bruxas, em O Farol, a rivalidade e a animosidade entre Ephraim Winslow (Robert Pattinson) e Thomas Wake (Willem Dafoe) são a ruína dos personagens.
Para narrar essa espiral ascendente de loucura, Eggers coloca seus dois únicos protagonistas em um ambiente ermo: um farol numa ilha isolada na costa da Nova Inglaterra do século XIX. Sob condições insalubres, os dois são encarregados da manutenção desta construção durante o período de um mês. Thomas, o chefe manco e mais velho, designa que Ephraim realize todas as tarefas braçais enquanto ele cuida da lanterna ao topo do farol, se trancando todas as noites na estrutura. Com certo desgosto, o jovem realiza os trabalhos à exaustão e a rotina exasperante vai, aos poucos, corroendo sua sanidade mental. Em meio a delírios envolvendo figuras mitológicas como sereias e tentáculos lovecraftianos, Ephraim, desejando a tranquilidade da luz do farol, se revolta com seu superior, gerando um embate entre os dois homens a respeito dos cuidados com o local.
Os elementos fílmicos escolhidos por Eggers fazem questão de engrandecer essa atmosfera opressiva estabelecida. A razão de aspecto em 1.19:1 (tela quadrada) evidencia o caráter claustrofóbico daquele ambiente, enquanto a trilha sonora, pontuada pela repetição incessante de ruídos das ondas, barulhos de chuva e pela buzina do farol, causam um desgaste proposital no espectador. Além disso, a fotografia em preto e branco corrobora para a atmosfera amedrontadora, pois o uso bem feito das sombras, que muitas vezes tomam conta da tela, gera alguns planos assustadores. Portanto, é importante para o diretor que o espectador se sinta a exaustão experimentada pela personagem de Pattinson e enlouqueça junto com ela.
Numa leitura mais simples, O Farol pode ser visto como uma crítica à hierarquia nas relações trabalhistas, onde empregados trabalham muito mais e em condições piores que seus empregadores sem obter as devidas recompensas. No entanto, a simbologia deste filme sugere leituras muito mais amplas e complexas, pois, ao colocar dois homens sozinhos disputando sobre como cuidar de uma construção de formato fálico, há, claramente, um comentário a respeito da figura masculina e seu falocentrismo.
Com isso, vale notar que a maioria dos embates giram em torno de um sentimento essencial para a toxicidade da masculinidade: o orgulho. Thomas ignora as normas do local e entorna bebidas como se não houvesse amanhã, enquanto Ephraim permanece contido até ser desafiado por seu superior. Os desafios e menosprezos são eventos constantes na relação entre os dois zeladores, uma briga de egos para um se provar superior ao outro. Esse embate de personalidades gera uma dinâmica muito peculiar entre as duas personagens, que transitam do ódio ao amor, gerando uma tensão sexual latente que nunca se concretiza devido a repressão sentimental causada pela masculinidade tóxica. O estudo de Eggers sobre o masculino não se limita somente ao psicológico e se estende, também, ao físico, explorando a brutalidade presente nos trabalhos braçais de Ephraim e nas danças bêbadas da dupla. A escatologia, usada como alívio cômico, se faz bastante presente e sobram menções, das mais explicitas as mais sutis, ao órgão sexual masculino. Aos poucos, portanto, toda essa repressão sentimental e esse embate interminável acabam minando os personagens até que tudo culmine em uma grande tragédia grega.
Então, nada mais natural do que evocar a mitologia da Grécia para finalizar a metragem. Quando Ephraim finalmente consegue alçar ao topo do farol, todo o conteúdo imagético nos remete ao mito de Ícaro, que quis voar perto do Sol, mas perdeu as suas asas por isso. Já o jovem faroleiro, almejou a luz do farol e sua cobiça levou a destruição física e psicológica da dupla de zeladores.
Se em A Bruxa Robert Eggers enxerga a feminilidade como algo positivo para a sociedade e digno de exaltação, em O Farol o autor demonstra que com a masculinidade ocorre o completo oposto, pois seu comportamento autodestrutivo é nocivo para a sociedade e para o individuo. Para provar seu ponto e finalizar (por enquanto) seus estudos sociais, o autor nos entrega mais uma experiência sensorial através de um terror atmosférico extremamente denso e frenético, com dois atores entregando encenações excelentes, digno de uma visionada em tela grande.
O Farol está presente na programação do Festival do Rio e estréia dia 02 de Janeiro de 2020.