Brooklyn: Sem Pai Nem Mãe é a adaptação de Edward Norton para o romance homônimo escrito por Jonathan Lethem. Desde que o livro foi lançado em 1999, o ator sonhava em adapta-lo para as telonas, mas diversos empecilhos, unidos a escolhas pessoais de Norton, adiaram seu lançamento. Vinte anos depois, finalmente o renomado ator consegue dar a luz ao seu projeto ambicioso e, para isso, ele assume a direção, o roteiro e o protagonismo do filme. Contando com a benção de Lethem, Norton transfere a trama dos anos 90 para a década de 50, com um propósito curioso em mente.
Ao ambientar a trama na década de 50, Edward Norton recorre ao gênero noir para compor a sua narrativa. A história conta a trajetória de Lionel Essrog (Norton), um detetive particular que investiga a morte do mentor Frank Minna (Bruce Willis) e possui síndrome de Tourette. Devido a sua condição, Lionel passa por situações constrangedoras por causa dos tiques constantes e das frases soltas em momento de ansiedade, no entanto, sua mente em constante ebulição contribui para que ele possua uma memória fotográfica extraordinária. Aliado a essa memória espetacular, o detetive começa a seguir as pistas que se desenrolam em uma conspiração envolvendo a classe política de Nova Iorque, representada pelo corrupto Moses Randolph (Alec Baldwin), um projetista que busca modernizar a cidade através da desabitação de áreas ocupadas pela população mais pobre da metrópole, representada por negros e latinos. Uma das pistas levam Lionel a Laura (Gugu Mbatha-Raw), uma jovem ativista política moradora do Harlem – uma das regiões afetadas pelas medidas de Moses – com quem ele acaba se envolvendo.
Uma das características mais marcantes do gênero noir consiste na narrativa em off do protagonista, que tem como objetivo exprimir seus pensamentos para o espectador. Neste filme, este tipo de locução se faz presente, mas vai além de uma simples externalização de pensamentos, existe, também, uma imersão na psique do personagem e sua condição, isso porque há uma espécie de fascínio de Edward Norton em abordar síndrome de Tourette. Aliado à montagem, esse mergulho vai além dos monólogos e das situações constrangedoras passadas pelo detetive, cenas perspicazes momentos contemplativos e surrealistas são inseridas para mostrar o estado mental do personagem, por exemplo: quando ele fuma maconha para aliviar a ansiedade, há um corte descontínuo seguido de uma tela preta e, logo após surge a imagem de piscina amarelada, enquanto ao fundo toca uma música melancólica – e inédita – de Thom Yorke, ao mesmo tempo que o personagem expõe sua condição de vulnerabilidade; em contrapartida, em uma situação de tensão, Norton exibe as memórias do personagem através de uma edição que tenta reconstituir suas lembranças usando de repetições de cenas unidas a efeitos de um rolo de filme queimando, evidenciando a confusão mental de seu personagem. Além disso, outro ponto interessante (e que também justifica a escolha de Norton pela década de 50) dentro deste estudo de personagem é como a trilha sonora representa a Tourette, pois, graças a efervescente cabeça do detetive, a trilha é pontuada a maior parte do tempo por notas de jazz sempre com uma cadência específica correspondente as situações pelas quais Leslie passa, a confusão harmônica dos instrumentos do jazz é uma metáfora para a mente do detetive. Por fim, o estudo minucioso do personagem se completa nas situações propostas por Norton, que nunca cai na romantização, muito menos na apelação, pois há personagens que aceitam a doença dele, assim como existem personagens que o tratam como aberração, deixando a cargo do público a interpretação de como reagir às peculiaridades do protagonista.
Enquanto o estudo de personagem é cuidadoso, o drama político é extremamente atual. Ao convocar Alec Baldwin para interpretar o antagonista do filme, é impossível não traçar paralelos entre seu personagem e Donald Trump (até porque Baldwin é um notório imitador do presidente americano), pois seu personagem é grosseiro, racista, higienista e bastante egocêntrico mas, muito além da alusão a Trump, a história busca discutir dois pontos em voga atualmente: gentrificação e racismo estrutural. As duas temáticas caminham lado a lado na trama, mostrando como a prefeitura não dá a menor importância para bairros majoritariamente negros das regiões mais pobres da cidade, a gentrificação planejada da cidade passa pela expulsão de minorias de suas casas para a realização de construções civis como pontes ou parques. A representação da Nova Iorque através de uma fotografia suja, predominantemente fria e de cores chapadas, colabora para a criação desta atmosfera opressiva. Algumas escolhas de planos também contribuem para enfatizar este descaso, pois Norton busca filmar cantos sujos, calçadas entupidas com lixos e, em determinado momento, opta até por filmar uma casa forçadamente abandonada.
Além disso, a narrativa busca traçar um paralelo entre a doença de Leslie e o racismo sofrido por essa parcela marginalizada do distrito e é nesse paralelo que a relação entre o detetive e Laura se estreita. Há uma frase marcante para representar essa dicotomia, quando Laura diz algo similar a: “cada um com as suas lutas diárias”. A relação entre os dois é possivelmente o ponto que mais se distancia do noir, mas de maneira positiva, pois o personagem de Norton não é aquele arquétipo do homem viril e sedutor, nem Laura é uma fêmea fatal que existe somente para servir de interesse amoroso. Há, na verdade, uma subversão desses esteriótipos, pois quem toma as atitudes do casal é Laura, mas não possui aquele ar sexual e sensual, suas ações são delicadas e cuidadosas, como em uma cena em que a dupla dança em um bar de jazz que é cenário central do filme.
Apesar de todas essas qualidades, um filme noir não existe sem as suas reviravoltas e, são justamente estas viradas que acabam enfraquecendo este enredo tão bem trabalhado. Ao dar espaço para um drama familiar entre Moses e seu irmão Paul (Willen Dafoe), ao passado de Leslie e à história da família de Laura, a trama tenta fazer uma união entre o universo de Nova Iorque e as histórias particulares de cada um destes personagens e, para isso, ela se apoia em soluções mirabolantes e coincidências extremamente convenientes. Há um certo pretensiosismo de Norton em estabelecer um universo coeso e perfeitamente interligado, no entanto, ele se perde em suas histórias paralelas, desenvolvendo alguns arcos e deixando de lado outros. Norton é até cuidadoso em não deixar pontas soltas na sua história, porém, sua decupagem peca ao distanciar muito os momentos de aparição de certos personagens – em especial Tony (Bobby Cannavale) –fazendo com que alguns desfechos pareçam rasos ou até mesmo abruptos.
Ainda que sua decupagem levante a suspeição do espectador, Brooklyn: Sem Pai Nem Mãe está longe de ser um filme ruim. Suas virtudes se sobressaem aos seus defeitos e tanto a investigação de Leslie, quanto o estudo deste personagem são competentes o suficiente para entregar uma narrativa coerente. Além disso, suas temáticas extremamente atuais e pertinentes são capazes de gerar uma reflexão a respeito do nosso comportamento enquanto sociedade. A sensibilidade de Norton para tratar o distúrbio mental de seu protagonista é capaz de gerar empatia e a trama política em forma de denúncia consegue revoltar o público com relação a marginalização da população negra, sem cair no senso comum de que todo político é ruim e corrupto. Portanto, o filme consegue entregar uma experiência envolvente, que toca em temáticas universais e desenvolve um mistério que mesmeriza o espectador ao longo de toda a projeção. Certamente é uma escolha certa para quem gosta do gênero policial.
Brooklyn: Sem Pai Nem Mãe estréia hoje (05/12) nos cinemas.