Não tenho dúvidas que o pernambucano Gabriel Mascaro é um dos melhores diretores de sua geração. Boi Neon, Ventos de Agosto, Doméstica: ele já provou que sabe mexer com todas as emoções dos espectadores, tanto na ficção, quanto no documentário. Por isso, minha expectativa foi nas alturas quando assisti ao trailer de Divino Amor, um filme cujo enredo, a princípio, me fez imaginar uma espécie de mistura entre Black Mirror e The Handmaid’s Tale por tratar de assuntos como a tecnologia em uma sociedade extremamente burocrática e religiosa. Altas expectativas podem ser muito prejudiciais para qualquer experiência se o produto não entrega aquilo que esperamos. Felizmente, esse não é o caso aqui.
O longa é uma distopia futurista e conta a história de Joana (Dira Paes), uma mulher extremamente religiosa que trabalha como responsável da área de divórcios do cartório. Por acreditar piamente na eternidade do casamento, ela tenta convencer todos os casais que atende a dar uma nova chance para o amor através da religião. É fato que o título e a sinopse podem enganar os desavisados – na minha sessão, várias pessoas abandonaram o filme, principalmente pessoas de mais idade. Divino Amor é forte, trata do sexo e da religião em seus mais altos níveis, ironiza os fanáticos e, principalmente, assusta por apresentar um futuro palpável, quase profético.
Gabriel Mascaro brinca o tempo todo com as cores, principalmente rosa e azul, para alfinetar o velho discurso de “meninas usam rosa e homens usam azul”. A “igreja” a qual Joana frequenta tem uma estética neon, completamente fora do normal. Inclusive, há uma cena em que vemos todas as casas da rua em que a personagem mora e a dela é a única com uma luz vermelha no interior, claramente fazendo alusão a um prostíbulo, ou um lugar onde o sexo tem muita influência. Isso tudo faz uma bela contradição com o cartório em que Joana trabalha, onde a única cor predominante é o cinza. Os enquadramentos escolhem muito bem o que vão mostrar e o que vão esconder do público, dando aquele gostinho de que falta algo, mas tudo bem proposital. O diretor faz com que esperemos ansiosamente cada nova cena, não apenas para dar continuidade à história, como para ver quais surpresas e sensações ele irá tratar a seguir. A narração infantil ao fundo entra em momentos certos para aumentar essa ansiedade e contrapor a voz leve e calma da criança com toda a tensão do filme. E a trilha sonora… é tão marcante que arrepia a todo instante elevando e conectando o ápice de cada cena.
O futuro construído pelo filme é amedrontador. O Brasil regrediu como sociedade enquanto avançou na tecnologia. Logo no início, vemos vários casais na praia: os homens de sunga e as mulheres cobertas por um maiô da cabeça aos pés. A “igreja” só permite a entrada de casais, ninguém pode entrar desacompanhado – é importante ressaltar que em nenhuma ocasião é mostrado um casal homoafetivo, dando a entender que esses não pertencem a tal realidade. Também há um drive thru de orações onde o pastor se aproveita da fé dos crentes repetindo apenas frases genéricas como “se quer respostas, Deus vai dar perguntas” ou “pra quem tem fé, nada é impossível”. Nesse meio tempo, a tecnologia aparece apenas em objetos ligados ao governo e, consequentemente à Igreja, nunca na vida do cidadão, tendo o cúmulo desse progresso em um detector que identifica, entre outras coisas, o estado civil das pessoas e solta uma frase parecida com “Governo Brasileiro, cuidar da vida é o nosso trabalho”.
Com relação às atuações, a Dira Paes está incrível! Ela é a alma do filme e consegue alcançar – e transmitir – sensações tão fortes que o espectador pode se colocar no lugar dela. Em alguns momentos nos incomodamos com suas ações, em outros temos pena e, em outros, temos vontade de sacudi-la pelos ombros para fazê-la acordar para a realidade. No entanto, como todo o longa é em sua perspectiva, percebemos que, na verdade, ela acredita verdadeiramente que está fazendo a coisa certa. Júlio Machado interpreta Danilo, marido de Joana, e desenvolve bem o personagem, mas não consegue entregar todo o seu potencial. Parece que, ao lado de Dira, ele trava e termina não mostrando o real motivo de estar ali.
Divino Amor absolutamente não é pra qualquer um. É um filme denso, com cenas chocantes e que não tem medo nenhum de irritar os espectadores que caírem de paraquedas na sessão. Talvez o ato final merecesse um pouco mais de intensidade para acompanhar todo o turbilhão de emoções durante o restante do longa. Mesmo assim, a coragem do diretor e do elenco merece que o filme seja visto e revisto para que possamos sair cada vez mais instigados com tudo o que assistimos na tela.