Mister Rogers’ Neighborhood foi um dos programas infantis mais icônicos e longevos da televisão estadunidense. De 1968 até 2001, o educador e apresentador Fred Rogers trazia lições para crianças do país através da TV aberta sempre de maneira calma e lúdica. Em meio a canções, fantoches e maquetes, Mr. Rogers abordava assuntos que eram considerados tabus de serem passados no meio televisivo. Foi assim, por exemplo, que ele conseguiu inserir um dos primeiros personagens negros recorrentes em um programa infantil de televisão, o Oficial Clemmons. Inclusão, portanto, era uma das temáticas mais importantes para o apresentador, mas, ainda mais importante e evidente para ele, era a questão sentimental. Para Rogers, era vital que crianças não reprimissem seus sentimentos e falassem abertamente o que pensam de maneira calma e serena, pois ele acreditava que sentimentos são impulsos controláveis. Além disso, um dos bordões mais recorrentes do apresentador era: “você é especial”, que ele fazia questão de frisar ao fim de todo programa. Após sua morte em 2003, era natural que uma figura tão doce e marcante ganhasse uma homenagem nas telonas.
Com um certo atraso, surge Um Lindo Dia na Vizinhança, um filme que busca fazer jus a figura de Mr. Rogers. Dirigido por Marielle Heller (Poderia Me Perdoar?), o longa se debruça no curioso fato de que Fred Rogers era uma pessoa difícil de se entrevistar, pois ele monopolizava a conversa por se interessar demais na vida dos seus entrevistadores. Embasado pela reportagem da Esquire, o filme conta a história de Lloyd Vogel (Matthew Rhys), um repórter investigativo amargo e cético que, após ter um filho recém-nascido, recebe a incumbência de realizar uma matéria sobre Fred Rogers (Tom Hanks). Com diversos problemas familiares e um estresse descomunal, Lloyd se sente menosprezado e revoltado com a tarefa recebida. No entanto, ao conversar com sua esposa Andrea (Susan Kelechi Watson), ele é convencido a dar uma chance ao herói da infância dela. A medida que os encontros se sucedem, vemos Rogers entrar cada vez mais na vida de Lloyd e aconselha-lo a se reconciliar com sua família, em especial com Jerry (Chris Cooper), o seu pai.
Apesar do protagonismo inegável de Lloyd, é interessante ver como o filme lida com a figura de Fred Rogers. A interpretação fidedigna de Tom Hanks evoca perfeitamente o apresentador, dando a impressão de que é Mr. Rogers em tela. A personagem possui uma presença tão impactante, que é encenada quase de forma divina. Para corroborar com essa encenação, a escolha da diretora de iniciar e terminar o filme dentro do estúdio onde o programa era gravado deixa ainda mais evidente o caráter sobrenatural dela, pois dá a entender que a personagem teve controle de todas as ações da trama. Além disso, para realizar todas as transições de cenas que indicam uma locomoção ou uma viagem, são colocadas as maquetes características do programa. A santidade de Rogers também fica evidente na onipresença do apresentador, que parece sempre saber a hora de se comunicar com Lloyd, “interrompendo” o desenvolvimento do longa-metragem sempre que parece necessário, seja por uma ligação telefônica ou por gestos espontâneos de ternura. Por fim, há uma cena pontual que sintetiza todo esse caráter do personagem: quando entrevistador e entrevistado estão conversando em um café, Rogers pede um minuto de silêncio, tudo a sua volta para e ele olha para a câmera, como se quisesse provar seu poder divinal para o público através dessa quebra da quarta parede.
Mas porque retratar um homem comum desta forma? Porque, em tempos tão obscuros e duros, a capacidade de mudar alguém através da simplicidade e benevolência parece ser algo além da compreensão humana. Portanto, por mais que inúmeras vezes o filme faça questão de dizer que ele é um ser humano qualquer, essas ações gentis parecem algo muito incomum. Sua habilidade é tanta, que é capaz desarmar o repórter descrente, sisudo e transformar essa persona intragável em alguém que se importa com o pai e o próprio filho. Os ensinamento de Roger – regidos por sua filosofia já citada – abordam temas que passam de masculinidade tóxica até o perdão de traumas passados e passam pela paternidade, pois, ao ensinar Lloyd a expressar seus sentimentos de maneira serena, o repórter consegue ter mais tempo pro filho e a entende o lado do pai ausente.
Essa atmosfera gentil, terna e harmônica dão um caráter natalino ao filme, por mais que essa festividade nunca esteja presente no longa. Contos sobre perdão e conversas sinceras a respeito de sentimentos remetem a esta temporada e a gentileza de Rogers lembra figuras bondosas aos moldes de um Papai Noel. Portanto, é compreensível enquadrar Um Lindo Dia na Vizinhança na categoria de filmes natalinos.
Ao fim da projeção, quando o clima esperançoso paira pelo ar aquecendo os corações da platéia, um momento emblemático se sobressai antes do fade out ocorra e os créditos tomem conta da tela: Rogers fica sozinho no estúdio que aos poucos se apaga a medida que ele caminha até um piano e toca repetidamente as notas graves do instrumento. Este momento acena para um dos diálogos do longa-metragem, onde Roger diz para Lloyd que para extravasar os momentos de raiva, basta tocar os acordes mais graves de um instrumento musical. Esse final, por mais simples que seja, mostrar que até a figura mais doce de todas possui problemas e que não há mal nenhum em ter momentos ruins, aproximando essa personagem sacra dos espectadores, como se o filme quisesse dizer que todos podemos ser que nem Fred Rogers.
Um Lindo Dia Na Vizinhaça é, portanto, uma ode a simplicidade, um filme sobre como a ternura e a doçura são capazes de mudar pessoas e, porque não, o mundo? Sua mensagem faz jus a imagem de um apresentador que ficou marcado por fazer o básico: se importar com os outros. É aquele conto de Natal não-natalino para ver e rever com a família e chorar bastante a cada belo momento da projeção, mesmo que em algumas horas eles se mostrem piegas. É uma lição sobre cuidar dos entes queridos, lidar com os próprios sentimentos e acabar com a toxicidade da masculinidade, uma semi-biografia fabular que vai deixar sua marca em muitos.
Um Lindo Dia na Vizinhança está na programação do Festival do Rio e tem previsão de estreia para o dia 23 de Janeiro de 2020