É muito gratificante para quem realmente aprecia uma experiência cinematográfica perceber que o projeto entende o papel de cada equipe profissional envolvida para a criação de um filme. E melhor: além de entender, valoriza cada uma dessas funções. Esse é o caso de Inocência Roubada, longa francês que explora de maneira criativa as memórias relacionadas aos abusos sexuais sofridos por Odette, uma menina de oito anos, e algumas consequências em sua vida adulta.
Desde a primeira cena – uma dança intensa, na qual a personagem está completamente entregue ao momento – percebemos que o filme possui algo de diferente. Este gancho nos puxa para dentro do enredo e nos leva a querer acompanhar se existirão outras boas ideias como essa. E a resposta é sim! O longa está cheio de boas ideias! Por isso, não é surpresa quando descobrimos que Andréa Bescond e Eric Métayer estão à frente, tanto do roteiro, como da direção. De fato, um trabalho como esse precisa estar muito bem unido em suas bases principais para poder funcionar. Andréa, inclusive, interpreta Odette em sua fase adulta, uma dançarina contemporânea com grande potencial, que não consegue trabalhos a sua altura e tem problemas para se relacionar com outras pessoas.
Mas, como disse anteriormente, não são apenas roteiro e direção que se destacam aqui – roteiro que, mesmo assim, possui problemas, mas já já chegaremos lá. O filme é uma obra prima ao se tratar de montagem. Odette e sua psicóloga literalmente entram em suas memórias e interagem com elas a ponto de que, em certos momentos, não sabemos mais o que é real e o que é imaginação. Na primeira vez que somos apresentados a essas interações, somos enganados por imaginar que isso será levado para um lado mais cômico do filme, no entanto, no decorrer da trama, percebemos como elas são usadas para transmitir as emoções da personagem. A frequente utilização de match cuts também cria uma dinâmica belíssima entre as cenas, intensificando algumas passagens e mostrando que a vida da dançarina nunca para. A montagem inquieta é completada pelo frequente uso da câmera na mão para mostrar a instabilidade de Odette, a importante mudança nos tons dos figurinos a partir de determinadas mudanças em seu comportamento e as inserções sonoras, que, na maioria das vezes, substituem muito bem algumas falas. Além disso, é lindo como a direção trata do palco: um ambiente vazio, onde Odette se encontra com ela mesma, como se fosse seu subconsciente.
Embora tecnicamente o filme seja quase perfeito, o roteiro deixa a desejar em diversos momentos da história. Nada é muito desenvolvido, parece que tudo foi jogado na tela e acontecendo “do nada”. Por exemplo: não sabemos porque Odette começou o tratamento na psicóloga e muito menos entendemos como ele funcionou. A personagem começa a se “livrar” de seus traumas, mas não vemos motivo para isso estar acontecendo. A própria psicóloga (Carole Franck) também não é elaborada. Sabemos que ela é insegura e não se acha adequada para tratar de um caso mais complicado, mas em momento algum somos apresentados a ideia de que ela conseguiu se encontrar como profissional. Como Odette fez a transição do ballet clássico para a dança contemporânea? Isso com certeza foi um ponto de virada em sua vida que deveria ter sido tratado. A personagem da mãe (Karin Viard) também é inconsistente. Em alguns momentos achamos que ela é uma mulher que, mesmo rígida na educação da filha, consegue ser doce e teme que ela cresça, porém, mais para o fim do filme, ela vira outra pessoa e parece não se importar com a família, apenas com as aparências de uma vida perfeita. Em que momento isso aconteceu? Não sabemos. E o relacionamento de Odette com o namorado, até agora continuo tentando entender.
Dessa forma, o roteiro entroncado se junta a uma fotografia errada – clara e colorida – criando o maior problema do longa: o modo que a pedofilia é tratada. Assistimos às cenas de abuso na perspectiva de Odette criança, mas, aos poucos, com tantas informações sendo jogadas na tela, esquecemos que esse é o assunto principal e começamos a ver apenas a história da vida de uma dançarina e, quando voltamos para uma cena da infância, ela parece desconexa com o resto do filme. Um assunto tão importante como a pedofilia, deveria ser tratado com mais cuidado para não parecer ser apenas um chamariz para a audiência. A impressão que fica é que o longa tem tantas ideias, que poderia, facilmente, ser transformado em uma série – ou, pelo menos, durar mais que 1h43. Dessa maneira, seria possível desenvolver cada trama com a dedicação que merecem.
Inocência Roubada é um filme imersivo, com atuações dedicadas e ideias bem criativas, mas precisaria de mais tempo para poder cumprir sua função de tratar de como que os traumas da infância atingem a vida adulta. Faltou exatamente o desenvolvimento de como que a inocência de Odette foi roubada. No entanto, o longa tem tanto potencial, que deixa a vontade de assistir mais para entender.