O livro do autor brasileiro Rubem Fonseca está sendo pedido para análise da Redação do Exame Discursivo do Vestibular UERJ neste ano, e para tanto, imagino que muitos estejam correndo atrás de terminar de ler, e alguns, sem muito tempo.
Como vi na internet que nem todas as resenhas se aprofundam na complexidade da trama proposta pelo autor e vêem apenas a camada superficial, tratando-o como um roteiro de um filme clichê de assassinato, – eu mesmo, no início, brincava dizendo que o livro daria uma ótima minissérie da Rede Globo, tal como aquela Dupla Identidade protagonizada pelo Bruno Gagliasso, ou um filme dirigido por Matthew Vaughn, diretor de Kick-Ass e Kingsman, mas ao terminar o livro e refletindo sobre, comecei a pensar diferente – resolvi fazer esta resenha para ajudar, pois, não sabemos como será tratado no tema da Redação e portanto, irei analisar e decifrar, resumidamente, as camadas da obra. O livro, é claro, pode ser muito bem visto como apenas uma trama policial que serve como entretenimento e passatempo, caso você enxergue de forma superficial ao ler da primeira vez, mas ao ler da segunda vez você consegue dar mais atenção a detalhes e inclusive responder dúvidas que foram deixadas no final ao terminar de ler na primeira. Se o livro fosse assim tão superficial, acredito, que não seria o tema pedido da Redação, levanto em conta que Dom Casmurro, com suas dezenas de interpretações, foi o tema pedido no Exame Discursivo da UERJ no ano passado.
O Seminarista tem um ritmo muito parecido com um filme de ação, o que dá a entender que o autor já o preparou para um roteiro adaptado, a primeira vista, mas não. A não ser que o filme não queira passar assim toda a profundidade do livro, o texto adaptado terá de ser muito mais criativo para transcrever visualmente toda a metáfora escondida. A história começa com uma introdução bem semelhante aos filmes que mostram essa trama repetida do bandido aposentado. Os três primeiros capítulos são uma sequência de casos em que o protagonista José, – o nome mais comum do Brasil e curiosamente, o primeiro nome do autor também – um ex-seminarista e atual assassino de aluguel, nos apresenta para termos uma ideia de como era sua profissão até largá-la e afim de aposentar e ter uma vida tranquila. Dá-nos a entender que suas atitudes eram apenas para recolher dinheiro o suficiente para aposentar-se com pouca idade e poder curtir seus prazeres pelo resto da vida – música, livros, arte e mulheres, ou mulher, pois este se apaixona por Kirsten, uma alemã cujo nome significa literalmente cristã ou mesmo Cristo, que entra em sua vida e a muda completamente. José deixa de lado sua vida boêmia e passa a se dedicar a sua Noiva.
É importante notar que o protagonista deixa bem claro que nunca procurou muito se envolver em seus cases quando ativo. Que, quando assassino profissional, recebia as missões de seu Despachante sem perguntar quem era o contratante e por que o alvo deveria morrer. Dava um tiro na cabeça para apressar e diminuir o sofrimento, e nem lia jornais no outro dia para não saber de quem se tratava. Tanto que, ao aposentar-se, matou todos os que sabiam de sua profissão, inclusive o Despachante e sua ex-mulher, uma das únicas três mulheres que matou na sua vida, contanto com uma enfermeira que teve de morrer junto com um dos alvos, e sua atual noiva, Kirsten – um spoiler deixado pelo próprio protagonista, mas que seria explicado depois. A vida pacata de José com Kirsten vira de cabeça a baixo quando um dos seus antigos clientes passa a caçá-lo, consequência de suas ações sem questionar. José se vê obrigado a sair de sua vida pacata, pondo em comprometimento a segurança de Kirsten, que descobre sua arma, obrigando-o a contá-la tudo – lembrando que este foi o motivo para que este matasse sua primeira mulher e o Despachante – e descobrindo, mais tarde, que Kirsten é filha de ninguém mais, ninguém menos de que o próprio Despachante que, para confusão do leitor, ainda estava vivo, fazendo questionarmos se a sua execução aconteceria mais tarde na narrativa.
A trama então apresenta-nos mais três personagens importantes – Sangue de Boi, um colega ex-seminarista e que também se tornou assassino e que estava atrás de um disco com informações privilegiadas; D.S., também um colega ex-seminarista, que agora era muito rico e formava-se em letras; e Ziff, um milionário que supostamente era quem fazia antagonismo com Sangue de Boi e José. Começa aí, um segundo ato cheio de reviravoltas que levam mais tarde a morte do Despachante e Kirsten, mas não pelas mãos de José, e a morte de Sangue de Boi, Ziff e D.S., sim pelas mãos de José, que descobre mais tarde que D.S. também se tornara assassino, mas que, diferente de seus ex-colegas, mandava matar ao invés de fazer o trabalho por si, que era o responsável por toda a confusão em sua vida e que Ziff era seu assassino subordinado.
O livro termina deixando muitas perguntas, o que te faz, após refletir sobre, procurar ler uma segunda vez para descobrir se realmente foram deixados tais furos – o que parece inconsistente vindo do autor – ou se realmente foi proposital tal ambiguidade, como por exemplo, como encontramos Kirsten e o Despachante mortos se o protagonista nos contava que ele mesmo os matou? Lembrando que, toda vez que um próximo de José morre, ele encontra o corpo, o que nos faz pensar que foi ele o causador da morte e não tem consciência disto. Mas é refletindo mais que nos questionamos por que é tão importante o background do personagem sobre sua formação de padre. Seria somente para justificar o por que da afeição com a língua latina e a arte erudita ou para justificar o por quê da mudança tão drástica de comportamento em sua vida? Na real, não existe mudança nenhuma, tanto que não é explicado com clareza o que faz José largar a formação e é quando concluímos que José nunca a largou e que sua ocupação de assassino de aluguel é uma metáfora para o Seminário ou mesmo para a religião, tal como no filme Mãe. Percebe-se que Zé e todos os seus colegas ex-seminaristas se tornaram não padres, mas assassinos, assim, a ocupação nada mais é do que uma metáfora para os sacrifícios que os seminaristas tem de fazer em sua formação, como matar o pecado, as crenças, os prazeres, dando por exemplo os casos em que Zé tem de matar um sósia do Papai Noel, simbolizando o afastamento nas crenças populares, mitos e paganismo, e quando Zé tem de matar o cara das joias, simbolizando o desapego a riqueza material.
Ao mesmo tempo, Zé simboliza o Homem, enquanto Kirsten – cristã – simboliza a imagem da Noiva da igreja, ou seja, Jesus Cristo; seu pai, o Despachante, que já havia morrido em três capítulos anteriores e retorna, simboliza Deus, pois não mata, mas manda o Homem matar em seu lugar e, mais precisamente, o Deus do Novo Testamento, por ter a imagem de Pai, e quando Zé cita a frase de Nietzche Deus está morto – e o homem o matou – deixa isso ainda mais claro, também por ele matar outra imagem de Deus, o Deus do Velho Testamento, o Deus da Guerra, que é D.S – D’eus, que é como os judeus se referem a Deus para não levar seu nome em vão, tirando o eu de Deus – D’S, ou seja, tirando a si próprio de Deus, que, diferente do Homem, assassina vários, mas indiretamente, mandando Ziff fazer seu trabalho por ele. Ziff nesse caso seria o povo hebreu. O livro deixa aberto a muito mais teorias que podem ser abordadas e provavelmente o Exame Discursivo da UERJ não vai pedir isto, mas acreditamos que pedirá algum tema como o da Violência – se a violência é inata ao homem – ou a metáfora a intolerância religiosa. De qualquer forma, é importante ler o livro, nem que seja só uma ou duas vezes, e ler também as resenhas para refletir ou mesmo formular mais interpretações, pois dá para perceber como cada um sai pensando algo diferente sobre a trama niilista e dúbia do protagonista, logo que vemos tudo na visão de tal.
Mas para quem não pretende fazer uma análise tão profunda, o livro é um ótimo passatempo. Já começa na ação e no humor, e é muito bom ler uma trama policial passando-se no Rio de Janeiro – podemos identificar vários cenários e com direito a piada citando Nova Iguaçu, ao mesmo tempo uma linguagem agressiva que pode incomodar o leitor e impedir de relacionar-se com este a princípio, mas que a metade do livro nos pega torcendo por ele, nos fazendo questionar o certo e o errado, se somos ou não a favor do criminoso – ou mesmo da violência e da agressividade – quando é conveniente, e se esses conceitos podem ser invertidos e se valem apenas para quem o impõe e quando. É isto, abraços e tenham uma boa prova!