C. S. Lewis é uma figura reconhecida mundialmente por suas obras de qualidade e extremamente fascinantes. O autor de ” As Crônicas de Nárnia” possui uma infinidade de títulos publicados entre variados estilos.
Levando isso em consideração, a editora Thomas Nelson Brasil tem trazido diversas publicações para o Brasil – em edições muito bonitas. Dentre essas obras encontram-se Cristianismo puro e simples, A Abolição do homem e Cartas de um diabo a seu aprendiz, traduzidos por Gabriele Greggersen.
Além de tradutora, Gabriele é também uma estudiosa e fã de C. S. Lewis possui cinco livros publicados e que se relacionam com a obra do autor. O Terra Nérdica conseguiu realizar uma entrevista no mínimo interessante com a tradutora. Acompanhe abaixo.
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TERRA NÉRDICA: C. S. Lewis é um autor e uma personalidade reconhecido no mundo inteiro. Além disso, ele coleciona fãs de sua escrita em diversas partes do mundo e dos mais variados tipos. Acredito que você Gabi, seja uma apreciadora da vasta obra de C.S., já que possui cinco livros publicados que se relacionam com a obra do autor. Poderia falar um pouco como e quando o interesse pelos escritos de C.S. Lewis começou?
GABRIELE GREGGERSEN: Bom, a história é longa e conhecida da maioria daqueles que já me conhecem de uma forma ou de outra, mas vou tentar resumir.
Tive o primeiro contato com Lewis na infância, com o desenho animado de O leão, a feiticeira e o guarda-roupa (Martins Fontes). Eu sempre me emocionava quando via, mas não associava à Bíblia ou cristianismo, a não ser ao Natal (embora nessa versão a figura do Papai Noel tivesse sido censurada), mesmo já sendo cristã e tendo vindo de lar cristão. Depois os meus irmãos mais velhos leram as Crônicas no grupo de jovens e eu surrupiei os livros.
Mais alguns anos e fui reencontrar Lewis no banco do curso de graduação em Pedagogia da USP, com um professor muito eminente de filosofia, Luiz Jean Lauand. Na época o livro citado foi Cartas de um diabo a seu aprendiz (Thomas Nelson). Isso rendeu horas a fio de muita conversa e uma amizade que dura até os dias de hoje. Na minha infância, Lewis representava um alento, com seu mundo imaginário, ao mundo já cruel que eu via a meu redor. Já na graduação, ele foi minha tábua de salvação contra um mundo igrejeiro que me aconselhava a ter cuidado com a chamada “Teologia da Libertação” de um tal de Paulo Freire e que eu não “estudasse demais para não perder minha fé”; por um lado; e um mundo hostil ao cristianismo na faculdade, por outro.
Quando terminei a graduação, procurei o professor Lauand para ser meu orientador de mestrado e ele me disse que só o faria, se eu estudasse quem nos havia unido. No mestrado eu me dei conta de quantos livros Lewis tinha escrito e em que nível filosófico teológico e desisti da empreitada, para fazer a tradução comentada do equivalente dele no mundo católico, Josef Pieper. Mas Lauand não desistiu de mim e logo foi me desafiando ao doutorado, retomando Lewis, agora em outro nível, assim que saímos da banca de defesa do metrado. Três anos e meio depois eu defenderia a tese de dissertação Antropologia filosófica de C.S. Lewis (Editora Mackenzie), que virou livro e está disponível em forma reduzida pela Editora Prismas de Curitiba, com o nome de O leão, a feiticeira e o guarda-roupa e a Bíblia.
A tese já tem quase vinte anos. Meu interesse por Lewis não diminui desde então e continuo escrevendo e palestrando sobre ele. Inclusive tenho um site http://cslewis.com.br, ligado à Editora Ultimato, que também tem se empenhado muito na divulgação e tradução de obras de C.S. Lewis. Isso porque ele fala diretamente às dúvidas e conflitos que tenho em relação à fé. Lewis não escreveu para cristãos que aceitam tudo com facilidade e não questionam nada. Pelo contrário, ele é para os espíritos inquietos, que não se contentam com pouco ou com o feijão com arroz e querem uma feijoada encorpada para mastigar e se deliciar
TN: Olhando profundamente as obras do autor, é possível notar que ele possui uma relação muito forte com a fé e a religiosidade. Você acredita que suas obras possam sair do contexto religioso? Quer dizer, você acha possível que suas obras cativem pessoas que não são tão conectadas com a fé?
GG: Com certeza, principalmente a sua obra de ficção, especialmente as Crônicas de Nárnia, mas também a Trilogia Espacial e outros livros de ficção como Até que tenhamos rostos (Ultimato), O regresso do Peregrino (Ichtus), O grande abismo (Vida), e Cartas de um diabo a seu aprendiz (Thomas Nelson). Tanto que tem gente que lê e aprecia esses livros ou até mesmo vê os filmes de Nárnia e não faz qualquer associação religiosa. Apesar de ter sido acusado de embutir mensagens cristãs nas entrelinhas de seus escritos ficcionais, ele jamais os escreveu com cunho religioso, mas para escrever o tipo de obra que ele mesmo gostaria de ler. Foi com essa ideia de comum acordo em mente que os amigos C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien decidiram começar a escrever, cada um de seu jeito, para o grande público. Eles queriam nada mais, nada menos, do que escrever clássicos universais para todas as idades, culturas, épocas, línguas e lugares e acho que conseguiram. É claro que como bom cristão e apreciador dos temas religiosos, que são tão comuns nos grandes clássicos, eles não poderiam resistir a esses temas. Pode um clássico deixar de falar do transcendente, meu Deus? Mas o tema central das Crônicas é a salvação de uma Terra encantada pela participação de crianças humanas e a fé no sentido lato, e da trilogia espacial é a ciência e o racionalismo e não a religião diretamente.
Quando Lewis estava a fim de escrever sobre religião, ele o fazia em obras explícitas sobre o assunto: Cristianismo Puro e Simples, O Problema de Sofrimento e Milagres são livros que falam do cristianismo. Mas mesmo um não cristão ou não-religioso ou de outra religião pode apreciá-los por sua qualidade literária e pela importância universal dos temas que esses livros abordam.
TN: Você poderia contar alguma curiosidade que descobriu sobre o autor? Algo que você ache que as pessoas, de forma geral, não sabem, mas que você acha interessante.
GG: Bom tem a história por trás do seu nome para os íntimos, que era “Jack”. Ele assumiu esse nome por decisão dele mesmo e não por outros, como no caso da maioria dos apelidos que as pessoas recebem. E foi quando ele ainda era bem pequeno e viu o seu cachorro amado, de nome Jacksie, ser atropelado. A partir de então, em memória do animal querido, ele decidiu que passaria a ser chamado de Jack, para os mais chegados
TN: Qual a sua obra favorita do autor? Com qual delas você achou mais difícil de trabalhar?
GG: Isso é muito difícil de dizer porque Lewis é um autor multifacetado, que transitou por vários gêneros e porque eu mesma também não sou menos eclética. Então, vamos por partes:
Como ser humano com grande criatividade e imaginação, meu best-seller são as Crônicas de Nárnia. O meu lado de educadora dá preferência, como não deixaria de ser, à Abolição do Homem. Meu lado teóloga, a Cristianismo Puro e Simples. Meu lado futurista, à Trilogia Espacial (Martins Fontes). Meu lado psicológico e mulher, a Até que tenhamos rostos (Ultimato). Meu lado humorístico, a Cartas de um Diabo a seu Aprendiz. Meu lado devocional, ao Peso da Glória.
O livro mais denso que entre suas obras literárias que eu achei foi a sua dissertação de mestrado A Alegoria do Amor (Ed. É-Realizações), que também tive o privilégio (e o desafio) de traduzir, não só pela linguagem acadêmica e refinada, mas pela quantidade de citações de autores de todos os tempos e línguas, de que eu não fazia ideia de quem eram. Em suma, sua erudição foi o maior problema. Mas o que ajuda é que ele tenta assim mesmo, ser acessível e didático, pelo que não podemos considerá-lo um autor prolixo. Entre os livros teológicos dele, considero Milagres o mais complexo e difícil de entender, tanto que houve uma filósofa que questionou um ponto obscuro da obra sobre o naturalismo, que Lewis reviu em edições posteriores.
TN: O que você acha da relação de Tolkien com C.S. Lewis? Na sua opinião, o que você acha que mantinha os dois muito amigos? Você consegue encontrar similaridades entre as obras dos dois?
GG: Como comentei antes, eles eram amigos, no sentido mais autêntico do termo e descrito por Lewis teoricamente em Os Quatro Amores (Thomas Nelson), quando fala de amizade. Eles olhavam para as mesmas coisas, apreciando a literatura, particularmente a mitologia e dos contos de fada e, mais tarde, a Bíblia e a linguagem. Eles gostavam de elucubrar a partir desses mitos fazendo o que chamavam de teologia do romance, que hoje chamamos de teopoética. Até fundaram um clube para reunir pessoas em torno da mesma apreciação. Aliás, foi fazendo teopoética que Lewis se converteu ao cristianismo. Numa conversa com Tolkien e mais um colega do clube, chamado Inklings, Lewis descobriu que o relato dos Evangelhos tem a mesma estrutura dos mitos com uma diferença: nele o mito se tornou fato, ou seja, o que os mitos e contos de fada fantasiam e vestem de deuses e semideuses, a Bíblia concretiza na pessoa de Cristo, o Deus que se encarnou em ser humano, morrendo pela humanidade e resgatando a mesma para a eternidade. Com isso, Ele derrotou o mal de uma vez por todas. Isso convenceu Lewis que, naquela noite, se tornou o “mais relutante de todos os convertidos”, como ele o expressou em sua autobiografia Surpreendido pela Alegria (Ed. Mundo Cristão). Há uma biografia muito boa de O mais relutante dos convertidos, de David Downing (Ed. Vida) que relata muito bem essa história.
E esse interesse comum e a já mencionada vontade de escrever e trocar manuscritos foi que alimentava essa amizade, que só foi interrompida quando Lewis fez amizade com Charles Williams, do qual Tolkien não gostava e quando ele se casou com Joy Davidman no final de sua vida. (Essa história vocês podem ver no filme Terra das Sombras, com Anthony Hopkins fazendo o papel de Lewis).
Essa busca pela literatura clássica e suas verdades universais é o ponto em comum entre as obras de Lewis e Tolkien que não por acaso sempre têm algo de medieval em seu paladar. Ambos beberam de Santo Agostinho, São Tomás e dos Pais da Igreja. Mas as semelhanças terminam por aí, pois Tolkien tinha muito mais fôlego do que Lewis, ia mais fundo e era mais rico em detalhes e minucioso em seus escritos. Enquanto Lewis mal fazia revisão do que ele escrevia, Tolkien fazia tantas revisões e mudanças, que muitas das obras que temos hoje estão em forma de fragmentos e escritos inacabados, além de existirem diferentes versões de diversas cenas.
Aliás, a rapidez com que Lewis terminava e encaminhava suas obras irritava profundamente Tolkien que também criticava as Crônicas por seu excesso de imagens e sua confusão de figuras de diversas mitologias misturadas (alguns atribuem isso ao ciúme do sucesso imediato de Lewis com as Crônicas e Cartas de um Diabo a seu Aprendiz). Ele também achava que a associação com o cristianismo que Lewis fazia era muito explícita, beirando na alegoria. Mas Lewis negava que estava fazendo alegoria em que há uma moral obrigatória embutida nas entrelinhas das obras. Ele fazia sérias restrições às obras alegóricas.
A crítica que Lewis fazia a Tolkien era contra o seu desânimo e frequente vontade de desistir do empreendimento todo. É possível que Tolkien não tenha terminado sua gigantesca obra se não fosse pelo incentivo sempre presente de Lewis (e também de seu filho que cuidou da edição das obras póstumas, Christopher Tolkien). E isso faz parte da amizade: que um faça a crítica do outro, não é mesmo?
TN: As obras de C.S. Lewis sempre nos trazem ensinamentos. Qual foi a maior lição que você aprendeu com o autor?
GG: Essa pergunta é bem difícil, pois perdi a conta de quantas coisas por mim aprendidas nas leituras que fiz de Lewis e autores correlatos. Aprendi basicamente que as questões cristãs não devem ser tratadas de forma simplista e maniqueísta ou extremista – quer seja liberal, no sentido de que tudo pode, quer seja fundamentalista – mas com moderação, equilíbrio e discernimento. Como bom anglicano, ele sempre escolhe a via média, ou seja, o caminho do meio entre os extremos e tenta usar de um realismo que leva em conta a subjetividade e a psicologia, mas recomenda que nos libertemos das nossas tendências narcisistas e emsimesmadas e nos abramos para a totalidade do real.
Mas acho que a principal lição que aprendi com ele está ligada à pessoa de C.S. Lewis e seu jeito de ser e agir, e que se reflete nos seus escritos. Ele era muito simples e engajado na ajuda ao outro. Todos os royalties de seus livros iam para entidades de caridade. Mas ele não era apenas uma pessoa caridosa, mas também honesta. Admiro a simplicidade com a qual ele encara as próprias dúvidas com honestidade e sinceridade, buscando a verdade sem medo do que possa achar pela frente. Essa forma direta e sincera de enfrentar as questões mais cabeludas da filosofia e da teologia de sua época e de todos os tempos com a singeleza de uma criança, mas a profundidade e maturidade de um adulto que me fascina tanto nele. E isso, regado a muito humor. Procuro imitá-lo nisso nos meus próprios escritos e palestras, mas pergunta se eu consigo (risos).
O Terra Nérdica agrade muito, Gabi!
E vocês, o que acharam dessa entrevista?